SÃO PAULO (Reuters) - O primeiro filme envolvendo o nome do roteirista Charlie Kaufman foi "Quero Ser John Malkovich", uma comédia surreal em que um manipulador de marionetes encontra um portal para dentro da cabeça do ator do título do longa. Isso foi em 1999. Quinze anos e alguns filmes mais tarde, ele volta a esse mundo dos títeres em "Anomalisa" – seu segundo trabalho como diretor (o primeiro foi "Sinédoque, Nova York"), aqui dividindo os créditos com Duke Johnson.
Duplamente premiado no Festival de Veneza do ano passado – Grande Prêmio do Júri e um outro técnico para o uso do digital -, o longa concorre ao Oscar na categoria animação.
A história é basicamente povoada de pessoas infelizes, em busca de se conectar com alguém, mas, o outro, como já disseram, é o inferno. Um inferno com a mesma voz, pois com exceção de dois personagens, todos os demais (masculinos e femininos) são dublados pelo ator Tom Noonan, o que sugere uma espécie de anulação da individualidade de cada um e só evidencia o tédio e a melancolia do protagonista, Michael Stone (David Thewlis).
Stone é uma espécie de guru do marketing, autor de um livro chamado "Como posso te ajudar a ajudá-los?", sucesso de vendas e que tem aumentado a produtividade em 90 por cento em diversos estabelecimentos. O longa começa com uma viagem do autor de Los Angeles a Cincinnati, onde fará uma palestra. Todos os incidentes provocam uma espécie de humor meio negro, meio bizarro – seja com o passageiro ao seu lado no avião que segura sua mão - justificando: "É que sempre seguro na da minha esposa" - ou o taxista frustrado ao saber que ele ficará apenas um dia e não poderá visitar muitos pontos turísticos de Cincinatti.
A noite é longa e Stone tenta se reencontrar com uma antiga namorada – o que não dá muito certo também. E quando acha que está fadado a passar o tempo solitário, deprimido e entediado no quarto de hotel, ouve uma voz. Essa é uma das grandes sacadas dos diretores, pois é a única voz feminina de todo o filme.
Trata-se de Lisa – dublada por Jennifer Jason Leigh – que, com a amiga Emily, se hospedou no luxuoso hotel ("uma pequena extravagância") e irá à palestra no dia seguinte. As duas são atendentes de telemarketing e fãs do livro e do autor. Por isso, é uma grata surpresa quando ele bate à sua porta e as convida para um drinque.
Michael, como todos os demais personagens, são bonecos estranhos, com uma linha em torno de seu rosto que indica as diferentes partes que foram unidas para sua composição. E, a certa altura, fica claro o motivo da opção por um filme com bonecos – e não atores de verdade – nesta adaptação de uma peça de Kaufman, de 2005, interpretada pelo mesmo trio. Os paralelos ficam claros a cada cena, quando "Anomalisa" investiga a banalidade e tédio do cotidiano, que pode ser reconfortante, até certo ponto. É nesse vazio que as pessoas vão perdendo seus pedaços metaforicamente e os bonecos aqui, literalmente. Quando Stone ouve a voz de Lisa pela primeira vez, ele está começando a se despedaçar.
O que surge entre os dois é uma relação muito terna, de dependência e aceitação. O casamento de Stone está por um fio. Lisa nunca teve alguém que a amasse. Cada um representa o novo para o outro – um elemento diferente em meio ao mundo estandartizado em que vivem (daí todos os demais serem dublados pelo mesmo ator). Mas, ao mesmo tempo, não é responsabilidade demais para cada um desses dois ser tudo isso para o outro?
Há, no entanto, momentos que podem indicar outros caminhos. Numa das cenas mais bonitas do filme, Lisa canta à capela "Girls Just Wanna Have Fun". Sua versão melancólica para o clássico pop de Cindy Lauper serve como um hino libertário, um estímulo para procurar algo além da central de telemarketing. Mas é um brinquedo – encontrado numa sex shop – que Stone compra para o filho que sela o seu destino.
(Por Alysson Oliveira, do Cineweb)
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