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Por Lisandra Paraguassu
BRASÍLIA (Reuters) - No próximo domingo, quando 156 milhões de eleitores forem às urnas para eleger um novo presidente do Brasil, um tema estará na cabeça de boa parte deles: a fome, que voltou a rondar um em cada três brasileiros e tem se mostrado um fator capaz de inclinar a balança eleitoral.
Oito anos depois de o país deixar oficialmente o Mapa da Fome das Nações Unidas, a combinação de alta inflação, crise econômica na esteira da Covid-19 e um afrouxamento da rede de proteção social do Estado levou 36% dos cidadãos a ter dificuldade para comer --o maior número em 16 anos, desde que a Fundação Getúlio Vargas iniciou esse estudo.
O quadro também aparece nítido em outros levantamentos. São 15% dos domicílios ou 33 milhões de brasileiros passando fome em 2022 --14 milhões a mais do que um ano antes, de acordo com uma pesquisa feita em mais de 12.000 casas pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan), que reúne grupos brasileiros dedicados ao tema.
Num sábado de inverno, o casal Carlos Henrique Mendes, 26 anos, e Carla Marquez, 36 anos, e a filha Gabriela, 5 anos, esquentavam-se em uma fogueira no centro de São Paulo. O café da manhã é um pão com mortadela, mas eles informam que nem sempre está garantido.
"Faz tempo que a gente não faz uma compra mesmo. Está absurdo as coisas no mercado", conta Carla que, grávida de cinco meses, admite dificuldades do dia a dia com uma criança pequena.
"Isso aqui não é vida, não. Às vezes ela pede uma carne, alguma coisa, eu não tenho dinheiro. Aí eu peço nas casas. Eu aguento, ela não. Esses dias não tinha nada. Eu fraca, sem comer nada. Fui até para o hospital. Não tinha nada para dar para ela", contou, com lágrimas nos olhos, na maior cidade do país.
Na terceira maior cidade do Nordeste, Recife, a dona de casa Monica, moradora da favela do Arco-íris, expõe a insegurança em que vive quando perguntada sobre almoço: "Hoje não tem, não".
Não é a primeira vez que o Brasil vê a fome de perto. As cenas de crianças esquálidas sobrevivendo de cactos e farinha nas secas nordestinas chocaram no passado. Mas a velocidade em que o país destaque global na produção de alimentos voltou a ver cenas de penúria, com cidadãos fazendo filas enormes para conseguir ossos para se alimentar, levou a questão das estatísticas direto para a campanha dos principais candidatos.
"A insegurança alimentar nunca foi destaque em uma eleição como agora. É ponto fora da curva. Todo o espectro político está falando sobre isso", disse à Reuters Marcelo Neri, economista responsável pela pesquisa sobre segurança alimentar da FGV.
A fome é a faceta mais dramática de um panorama que inclui um retrocesso na renda média da população, atualmente em níveis de dez anos atrás, e alta na desigualdade, num coquetel de mal-estar social especialmente entre os mais pobres.
Concorrendo à reeleição, o presidente Jair Bolsonaro (PL) mirou nesta fatia da população para fazer sua maior aposta de campanha. Em julho, e com ajuda do Congresso, driblou tanto a lei eleitoral quanto os limites do teto de gastos do Orçamento para elevar em 50% o valor do benefício do maior programa social do governo, o Auxílio Brasil, que foi de 400 reais a 600 reais, com duração até dezembro.
Estabelecido para substituir o Bolsa Família, marca de gestão de seu rival na disputa, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o auxílio foi expandido até chegar a 20,2 milhões de famílias, um gasto de 1,5% do PIB.
No entanto, mesmo entre os beneficiados, o aumento do valor do Auxílio Brasil não trouxe para o presidente nem a simpatia -- nem o acréscimo de votos-- que ele esperava.
"Está chegando a eleição. Ele (Bolsonaro) não é bobo, ele quer ganhar. Ele vai tentar jogar as cartas dele, mas não vai adiantar", disse Carlos, do casal de São Paulo.
Sua pequena família mora em um quarto de aluguel pago pela pastoral da população de rua, mas eles passam o dia pelo bairro, onde Carlos estaciona o carrinho com o qual recolhe papelão, origem da maior parte da sua renda. Além disso, Carla recebe hoje os 600 reais do Auxílio Brasil.
Enquanto o marido se diz petista, a mulher diz que talvez vote em Bolsonaro, apesar de achar que será melhor se Lula voltar. "Ela vai votar no Lula. Aqui todo mundo é petista", corta Carlos, ao que Carla responde com um sorriso tímido.
Em Brasília, o discurso de Edilene Alves da Conceição, que mora com filhos e netos em uma barraca a poucos metros do Palácio do Planalto, não varia muito em relação ao do casal de São Paulo.
"Isso daí foi só para ganhar a eleição. Acham que a gente é bobo. Aumenta de 400 para 600 reais, mas você chega no supermercado e as coisas aumentam tudo, de que adianta? A tendência cada vez mais é a gente morrer de fome", disse à Reuters a baiana Edilene, que veio há 8 meses para Brasília com o marido, mas não consegue pagar um aluguel na capital.
Ainda assim, ela diz que a situação no acampamento é melhor que no Nordeste --onde a insegurança alimentar é maior que média nacional e atinge quatro em cada dez famílias, segundo a Rede Penssan. "A gente é obrigado a sair do Nordeste, não tem como viver mais lá. É fome, calamidade", diz ela, que culpa o presidente pelos problemas. A esperança de melhoria é com a eleição. "Mas não com ele (Bolsonaro)".
Declarações como de Carlos e Edilene, mais ou menos explícitas, todas sugerindo desconfiança das promessas de Bolsonaro na área social, foram a tônica de entrevistas feitas também no Rio de Janeiro, em Porto Alegre e Salvador.
O painel ilustra o que aparece nas pesquisas, que apontam que a bala de prata da campanha bolsonarista falhou até o momento na meta de encurtar a distância do atual presidente para Lula, que lidera com folga a corrida e flerta com uma vitória no primeiro turno, no próximo domingo.
A mais recente pesquisa Ipec, divulgada na segunda-feira, mostrou que 55% dos que recebem o auxílio irão votar em Lula Apenas 26% declaram voto em Bolsonaro.
Dados semelhantes aparecem em outros levantamentos, como Datafolha e Quaest, com os votos em Lula acima dos 50% e Bolsonaro, abaixo dos 30%. O impacto eleitoral pode ser decisivo: o universo dos que recebem o programa responde por 24% do eleitorado total, segundo o estimado pelo Datafolha.
"O auxílio não tem sido capaz de gerar efeito esperado pelo governo. O aumento chegou para as pessoas como uma manobra eleitoral e elas estão rechaçando essa manobra", disse à Reuters Felipe Nunes, diretor da Quaest Pesquisa e Consultoria.
Neste quesito, conta a reputação de Bolsonaro na área social, considerada errática, aponta o economista Marcelo Neri. "Existe uma instabilidade causada pela pandemia e pela resposta à pandemia. Teve uma redução do auxílio emergencial em 2021, depois uma suspensão, depois voltou em valor menor. Essa oscilação causa um impacto", disse Neri.
Além disso, nem o valor turbinado de 600 reais tem sido capaz de repor as perdas no poder de compra dos alimentos. Enquanto o índice geral de inflação mostra um acumulado de 4,7% no ano, só os preços dos alimentos acumulam no período alta de 9,83%.
Outro problema para o atual mandatário é enfrentar Lula, o nome associado à criação dos programas de transferência de renda no país. Entre as famílias com renda até um salário mínimo, o petista tem, nas principais pesquisas, a preferência de mais de 50% dos eleitores.
Bolsonaro prometeu manter o valor de 600 reais do Auxílio Brasil no ano que vem, mas a pesquisa Datafolha divulgada em 11 de setembro mostra que 53% dos beneficiários entrevistados acreditam que Lula é quem manterá a cifra do benefício, contra 37% do atual mandatário.
Na corrida para angariar votos, Bolsonaro prometeu, na campanha da TV, pagar mais 200 reais a cada beneficiário que conseguir um emprego, ainda que nem mesmo o valor de 600 reais esteja previsto no Orçamento de 2023.
O tema do financiamento do programa é também um ponto de interrogação para Lula, num contexto de aperto nas contas públicas e pressão para que o petista de comprometa com metas de responsabilidade fiscal.
"As pessoas dizem: 'Ah ele (Bolsonaro) está dando auxílio...' Mas ele dá e depois ele toma. Antes (com Lula) era muito melhor. Eu comprava um chinelo para os meninos, comprava uma roupa, e hoje não dá", diz Luciana Messias dos Santos, 29 anos, no barraco de madeirite em que mora na Estrutural, maior favela de Brasília.
Ela enfrenta o supermercado para alimentar oito pessoas com o dinheiro do Auxílio Brasil e com o que o marido ganha em uma fábrica de tijolos. Teve de adaptar um fogão velho para ser usado com lenha. "Gás não dá para comprar."
"Lula tem um recall que, para elas (os mais pobres), é a garantia de credibilidade em relação a um futuro melhor", afirma Nunes, da Quaest.
"FOME PARA VALER NÃO EXISTE NO BRASIL"
Do outro lado, Bolsonaro tem se mostrado irritado com o tamanho que o tema fome ganhou no noticiário.
"Fome no Brasil? Fome para valer, não existe da forma como é falado", disse o presidente em agosto. Na semana passada, foi a vez de seu ministro da Economia, Paulo Guedes, atacar o levantamento da Rede Penssan: "33 milhões de pessoas passando fome. É mentira, é falso. Não são esses os números".
Em uma manhã de setembro no Rio de Janeiro, a Reuters encontrou Carla Feliciano recolhendo frutas e legumes em caçambas de lixo na Ceasa. Carla recebe o Auxílio Brasil, mas é nas caçambas que consegue retirar boa parte da alimentação de sua família --marido e quatro filhos.
"Só não passamos fome pelo Ceasa, porque senão com certeza íamos passar", diz.
De acordo com a pesquisa Pensann, feita entre 2021 e o começo de 2022, 1 de cada 3 brasileiros disse ter feito alguma coisa que lhe causou vergonha, tristeza ou constrangimento para conseguir alimento.
Depois da pandemia e do atual governo, diz Carla, tudo piorou. O trabalho, de venda de salgados, serve para comprar gás, um ovo, alguma coisa que não consegue na central de distribuição de alimentos carioca.
Sobre a eleição, a mulher não titubeia: "Auxílio ou sem auxílio, não faz diferença no meu voto. Sou Lula e vou morrer Lula".
(Reportagem adicional de Leonardo Benassato, Amanda Perobelli, Pillar Olivares, Jimin Kang, Ueslei Marcelino e Diego Vara)