SÃO PAULO (Reuters) - Em sua adaptação elegante e sóbria da peça "Senhorita Julia", a atriz e cineasta norueguesa Liv Ullmann trabalha com dois polos de tensão: de gênero e de classe. É essa disputa que domina o filme, colocando em cada extremidade uma personagem feminina, e ao centro, quase como um tolo, a masculina.
O roteiro de "Miss Julie" foi adaptado pela própria diretora a partir da peça do sueco August Strindberg, mantendo o universo patriarcal de regras rígidas e pessoas oprimidas do século 19, embora tenha deslocado a ação para a Irlanda da mesma época.
Julie (Jessica Chastain) é uma moça ousada para o seu tempo. Enquanto o pai, um rico aristocrata, está viajando, durante uma noite de solstício, ela tenta seduzir o serviçal da casa, John (Colin Farrell). Acontece que esse é noivo da cozinheira, Kathleen (Samantha Morton), uma carola que não está disposta a perder seu futuro marido.
Durante essa noite, Julie desce até a cozinha onde encontra o casal e começa seu jogo de charme e poder. Ao longe, ouvem-se celebrações das pessoas da vila, afinal, é uma noite de festa. É também nesse momento que Julie mandou a cozinheira dar comida envenenada à sua cadela que está prenha de um vira-latas. O destino da cachorrinha, no entanto, pode ser apenas uma antecipação do que está por vir.
Julie quer John, mas John é ambicioso, e não quer Julie, mas quer o seu dinheiro. Kathleen também quer John, mas não tem armas, a não ser evocar Deus e os pecados que seu noivo estará cometendo ao se deixar seduzir pela filha do patrão. A disputa é entre as duas, e o prêmio (ou seja, a personagem masculina) é o que menos importa, no fundo. Ele é um pêndulo, ora de um lado, ora de outro, sem saber ao certo como agir diante de cada mulher.
Apesar da mudança de cenário, Ullmann se mantém fiel ao original, e joga o peso do filme em seus atores e na câmera austera, que beira a frieza, de seu fotógrafo Mikhail Krichman ("Leviatã"), que parece buscar mais que personagens, a disposição deles no castelo onde vivem, e como interagem com esse espaço. Nesse sentido, "Miss Julie" remete ao teatro – mas o filme está longe de ser um "teatro filmado".
A certa altura, John realiza o sonho de Julie, e o pós-coito, no universo de Strindberg, é um mundo aristocrata em decadência, ou seja, não é algo bom. No filme, a diretora pode jogar outra luz nessa ação: é a transformação de estruturas. O fato de as três personagens mergulharem num inferno pessoal logo após esse momento se torna um indício de que a mudança será inevitável.
E o fato de ser uma mulher a adaptar uma peça que é tão cruel com as mulheres tem muito a dizer. Ullmann parece querer alertar Strindberg de algumas coisas que ele não sabia, ou fingia não saber. Quando as disputas se intensificam, e as mulheres são "colocadas em seus devidos lugares" – o que poderia ser uma barreira para o filme ultrapassar, na verdade, se torna um alerta, uma contenção que explicita os limites das estruturas – elas novamente! – e diz que nem tanta coisa mudou assim desde a estreia da peça e sua adaptação de 2014.
(Por Alysson Oliveira, Cineweb)
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