SÃO PAULO (Reuters) - Os pequenos protagonistas de “Campo Grande” poderiam ser dois órfãos à la Charles Dickens, abandonados nas ruas da Londres do século 19, mas quis a vida que eles fossem deixados pela mãe na portaria de um prédio carioca do século 21.
O destino trágico da exploração é evitado porque não encontram um malfeitor, mas sim Regina (Carla Ribas), cujo nome está num bilhete que a mãe do casal de irmãos deixou com eles.
Primeiro surge Rayane (Rayane do Amaral), e o filme, dirigido por Sandra Kogut, começa com a menina já no apartamento de Regina, que tenta, em vão, conseguir ajuda das autoridades.
Mas como assim? Quem é essa garota que aparece do nada com o nome e endereço de Regina? A dúvida persiste, mas o foco não é o suspense, e sim o drama: o que fazer com essa criança? Não demora, chega também seu irmão (não muito) mais velho, Ygor (Ygor Manuel). Os dois são pequenos, e nem na escola estão.
Regina, numa interpretação luminosa da sempre inspirada Carla Ribas, é dona de casa, classe média, divorciada e está se mudando. Diz que o apartamento está grande demais para ela com a mudança da filha, Lila (Julia Bernat), que está saindo de casa.
Num outro tipo de filme – com um mundo mais idealizado, talvez – a protagonista simplesmente adotaria as crianças (a situação está dada, a casa, vazia e ela, sozinha) ou, ao menos, as acolheria. Aqui, pendendo para o realismo, ela tenta resolver a situação, até que não encontra outra saída a não ser deixar a dupla numa espécie de orfanato, o que leva a outros desdobramentos.
Há momentos em “Campo Grande” em que vemos um “Central do Brasil” revisitado – especialmente, é claro, na jornada de Regina e Ygor, que não é tão longa quanto a do filme de Walter Salles. Mas é, enfim, desses momentos em comum no carro que surge um laço de amizade que supera a desconfiança que existia entre os dois.
O primeiro longa de ficção da diretora Sandra Kogut foi “Mutum” (2007), baseado em “Campo Geral”, de Guimarães Rosa, e que também trazia uma criança como figura central. O ponto de vista infantil guiava aquele filme, o olhar curioso e para o qual tudo era novidade.
O fato de o protagonista ali ser extremamente míope era um fato simbólico marcante. Neste novo filme, não é tão diferente. Embora Ygor não tenha problemas de visão, estamos no terreno de uma focalização imprecisa. A criança vê, sem, boa parte das vezes, ser capaz de decodificar.
A região onde Ygor e sua irmã moravam não existe mais – ao menos, não como eles conheceram. No local está sendo construído um grande empreendimento imobiliário. A perda do seu habitat não interfere na vida dele logo de cara.
Com sua inocência, é incapaz de perceber isso, assim como a invisibilidade de figuras como ele e Rayane. O choque de culturas se dá em dois momentos – com o casal de irmãos andando pelas ruas de Copacabana e Regina, em Campo Grande.
Sandra – que assina o roteiro com Felipe Sholl – está interessada na transformação de ambientes, sejam os bairros (o mais abastado e o mais pobre e periférico), seja o apartamento de Regina, que está sendo “desmontado”, esvaziado. A cidade surge como algo em mudança – há obras na Copacabana do filme o tempo todo, e Campo Grande também está sendo modificado. Assim como os personagens do filme.
A questão é que em nenhum dos dois bairros parece haver espaço para Rayane e Ygor. Invisíveis, seu destino pode ser vagar pelas ruas ou esperar pela mãe (será que ela volta?) num orfanato. Premiado em diversos festivais, – entre eles, Havana e Mar Del Plata –, “Campo Grande” é, enfim, a tentativa de dar voz a esses excluídos.
(Por Alysson Oliveira, do Cineweb)
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