SÃO PAULO (Reuters) - Desde o imenso título, em "Um Pombo Pousou num Galho Refletindo sobre a Existência" não se pode reclamar de rotina, nem obviedade. O diretor sueco Roy Andersson venceu o Leão de Ouro em Veneza, em 2014, com esta obra plural, que constrói sua singularidade com uma mistura sutil de humor, ternura e também reflexão social e histórica.
O filme fechou a trilogia formada por "Histórias do Segundo Andar" (2000) e "Vocês, os Vivos" (2007) com mais uma série de pequenas histórias intercaladas, envolvendo temas duros como a morte e o subemprego, tendo como dois protagonistas Sam (Nils Westblom) e Jonathan (Holger Andersson), dois melancolicamente hilários vendedores de "artigos para fazer rir", como sacos de risadas, máscaras e dentes de vampiro.
Em vários segmentos, outros personagens vivem situações que permitem ao diretor tecer comentários histórico-políticos, envolvendo guerras, colonialismo, genocídio e escravidão.
A maneira como Andersson é capaz de compor cada um destes quadros e articulá-los é muito eficiente e particular, inclusive em termos estéticos, com um descoramento de cores de cenários, figurinos e personagens - o rosto de todos é pintado de branco, o que lhes dá um ar de clowns.
É um universo que se assemelha às vezes ao do finlandês Aki Kaurismaki, mas tem o seu próprio tom. O diretor sueco alinhava histórias, fragmentos, personagens, extraindo da alma deles uma estranha poesia, um humor peculiar e um sentido muito particular e crítico da História, e não só da Suécia.
O "pombo no galho" é visto logo de início, no primeiro esquete, dentro de uma vitrina de uma espécie de museu de História Natural, observado por alguns atentos visitantes. Tão imóvel quanto este pombo empalhado é a câmera no filme, que se movimenta muito pouco, milimetricamente, evocando o imobilismo das vidas que passa a comentar.
Muda-se de época com grande liberdade. Num dos segmentos mais divertidos, os clientes de um bar relembram um cliente fiel, frequentador há mais de 60 anos. Ato contínuo, um flashback volta a 1943, retratando como era este bar em plena 2º Guerra, cheio de brincadeiras e muita música. Nem a garçonete se esquiva de mostrar seus dons musicais.
Um outro bar de subúrbio entra como cena numa transposição ainda mais livre de épocas, quando seus clientes – aparentemente nos dias atuais – vêem passar na rua as tropas do rei sueco Carlos 2º (Viktor Gyllenberg), devidamente paramentadas como no século 17. Alguns soldados chegam a entrar no bar, montados a cavalo e tudo. Pouco depois, os mesmos soldados passam derrotados (a batalha em questão é a de Poltava, em 1709), seguidos pelo choro estridente das viúvas.
Os personagens são vários, cada um carregando o germe de um equívoco: um militar à procura de uma palestra, que sempre confunde suas datas; uma professora de flamenco (Lotti Tömros) atraída por um aluno mais jovem; um homem que não consegue tirar a rolha de uma garrafa de vinho e provoca uma tragédia; uma velha senhora nas últimas num hospital, agarrada com suas últimas forças a uma bolsa que os filhos tentam arrancar de suas mãos (outro momento de humor negro).
Uma frase banal é frequente nas conversas: "Eu estou feliz de saber que você vai bem", usada nas situações mais absurdas, como num laboratório em que cientistas submetem chimpanzés a choques. Mas nada é mais pateticamente esdrúxulo do que um espetáculo, a que comparecem velhos frequentadores, vestidos de gala como para ir a uma ópera, tudo para ouvir a "música" trágica dos gritos dos africanos negros jogados dentro de uma gigantesca esfera por homens vestidos como antigos colonizadores.
Mesmo os dois protagonistas são envoltos em fracasso. Ninguém lhes paga pelos objetos vendidos. Eles não conseguem escapar de uma vida endividada, morando num abrigo solitário. É assim que Andersson enxerga as contradições da condição humana, o tema único da trilogia encerrada aqui pelo diretor, temperada pelo peculiar humor causticamente sutil dos nórdicos.
(Por Neusa Barbosa, do Cineweb)
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