SÃO PAULO (Reuters) - Escrito e dirigido por Jordan Peele, “Corra!” é um dos filmes que melhor consegue expressar a hipocrisia de um aparente liberalismo - que não se alinha claramente nem à esquerda, nem à direita, postando-se confortavelmente num meio termo, apegado ao politicamente correto.
Uma combinação de drama familiar com terror, o filme é protagonizado por um jovem afro-americano que num final de semana vai conhecer a família de sua namorada. Há um desconforto por parte de Chris (Daniel Kaluuya), porque todos são brancos e ele, que bem conhece o racismo, pergunta a ela se contou para os pais que ele é negro.
Espantada, Rose (Allison Williams) diz que isso não é um problema para os Armitage. “Meu pai votou no Obama duas vezes, e se pudesse votava uma terceira”, alega. Uma frase que será repetida no filme pelo próprio Dean Armitage (Bradley Whitford).
A chegada à casa luxuosa numa região afastada da cidade onde mora a família revela um universo à parte. São todos sorridentes e felizes. Além de Dean, também há Missy (Catherine Keener), a mãe de Rose, e logo chega Jeremy (Caleb Landry Jones), o irmão. Curiosamente, os únicos dois empregados são negros: Georgina (Betty Gabriel) e Walter (Marcus Henderson).
Quando percebe o desconforto de Chris diante da situação, o patriarca logo explica que não é racista, que isso não é uma herança da escravidão e praticamente diz: “Eles são da família” - o que mais tarde se revelará algo um tanto bizarro.
Por debaixo da superfície brilhante e polida dessa família, na qual quase todos são médicos, há algo digno de “O Bebê de Rosemary” ou “As Esposas de Stepford” (ambos criados pelo escritor Ira Levin). Aos poucos, uma trama que parece uma versão contemporânea de “Adivinhe quem vem para jantar” ganha contornos mais sinistros, quando Missy promete acabar com o vício de Chris de fumar usando hipnose.
Em uma festa repleta de figurões – todos brancos e de uma certa idade –, Chris é uma espécie de troféu racial exibido pelos Armitage, como prova de sua modernidade e mente aberta. Todo mundo sorri para ele e o olha com um ar condescendente de aceitação, fingindo que o rapaz é um deles – inclusive na cor da pele.
Há apenas outro jovem afro-americano ali – interpretado com tino por Lakeith Stanfield –, cuja posição, como uma espécie de gigolô de luxo de uma matrona, apenas evidencia o ar de zumbificação que domina o seu olhar.
“Corra!” é um filme sobre os EUA pós-Obama, sobre as estruturas que permanecem por debaixo do verniz polido da falsa igualdade. Georgina e Walter são subservientes, como qualquer personagem escravo de “...E O Vento Levou”, e, ainda assim, mostram-se conformados com essa condição. Sempre sorrindo e parecendo nunca piscarem, suas feições congeladas podem esconder algo, o que incomoda Chris o tempo todo.
O diretor e roteirista Peele joga com as expectativas do seu público, desde o prólogo, quando um jovem afro-americano anda por uma rua de subúrbio em alerta (cansado de saber que um negro sozinho à noite num bairro de classe média é visto com suspeita) até o final do filme, quando faz uma concessão a uma conclusão que poderia ser ainda mais forte.
De qualquer forma, com “Corra!” (um título que pode tanto significar uma ameaça quanto um aviso), o cineasta realizou um dos terrores mais sagazes desde “Corrente do Mal”, capaz não apenas de assustar, como, especialmente, incomodar – e isso tem mais a ver com a questão social que aborda do que com os sustos que provoca.
(Por Alysson Oliveira, do Cineweb)
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