Por Roberto Samora
SÃO PAULO (Reuters) - A demanda chinesa por soja brasileira na esteira da recente escalada da guerra comercial China-EUA, ainda que mais comedida este ano ante o recorde de 2018, precipitou um movimento de reavaliação dos números oficiais de safra do Brasil, na medida em que há divergências importantes com as estimativas do setor privado.
Uma eventual revisão da estimativa de safra pelo governo poderia indicar maior oferta de soja para a exportação no Brasil, o maior exportador global da oleaginosa, diminuindo incertezas.
Pelo balanço de oferta e demanda da estatal Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), não haveria como o Brasil exportar 72 milhões de toneladas em 2019, conforme estima a Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove).
"O nosso quadro está bem apertado, não tem espaço para exportação de 72 milhões de toneladas", disse à Reuters o diretor de Política Agrícola e Informações da Conab, Guilherme Bastos, ao ser questionado em entrevista por telefone.
"Em função do quadro apertado (de oferta e demanda), estamos revisitando os números dessa e da safra anterior. O mercado indicou isso...", acrescentou ele, observando que não há prazo para o trabalho ser concluído e que, por ora, não se pode dizer se efetivamente vai haver alguma revisão pela Conab.
A Abiove, que representa as principais tradings e indústrias de soja, incluindo multinacionais como Bunge e Cargill, mexeu em seus números na última sexta-feira, mas não alterou as suas estimativas das últimas duas safras (2017/18 e 2018/19), que somadas já apontam uma diferença a maior de mais de 6 milhões de toneladas em relação aos dados da Conab.
Enquanto a Conab aponta safra de cerca de 115 milhões de toneladas para 2018/19, a Abiove vê 117,6 milhões. Mas a disparidade é maior para a colheita passada, com a Conab vendo 119,3 milhões e a Abiove 123,1 milhões de toneladas.
Em ajuste na semana passada, a associação aumentou números de estoques em 2017 e 2018, além de ter reduzido levemente o volume exportado em 2018, para um volume ainda recorde de 83,258 milhões de toneladas, vendo assim soja suficiente para elevar sua projeção de embarques em 2019 para 72 milhões de toneladas, ante 68,1 milhões de toneladas estimadas no início de julho.
Ao elevar a projeção, a Abiove citou a demanda da China em função da guerra comercial.
Segundo as previsões atuais, o país deve fechar o ano com estoques mínimos após uma colheita menor e com a China mantendo foco no produto brasileiro novamente no segundo semestre, uma repetição da situação atípica de 2018, enquanto chineses viram as costas aos norte-americanos, que normalmente abastecem os asiáticos nesta época.
As compras chinesas no Brasil, contudo, estão menores ante os incríveis números de 2018, principalmente em função da peste suína africana. Mas estão estáveis em comparação com 2017, por exemplo, somando 39,3 milhões de toneladas de soja de janeiro a julho de 2019, uma queda de pouco mais de 10% frente a mesmo período do ano passado, segundo dados da consultoria AgRural.
O volume importado pelos chineses responde por quase 74% das 53 milhões de toneladas que os brasileiros exportaram no acumulado do ano, marcado por uma safra menor.
ERRO EM 2017/18?
Analistas privados também têm destacado as disparidades entre os números da Conab e os do setor privado.
"O mercado talvez tenha errado na estimativa da safra 2018, foi maior... talvez tenhamos errado aí", disse o analista Luiz Fernando Roque, da Safras & Mercado, que admitiu algum ajuste na estimativa de 121,8 milhões de toneladas da consultoria.
Segundo Roque, levando-se em conta as estimativas governamentais de safra, o Brasil estaria sem soja "há cinco anos". "O mercado como um todo terá que revisar seus números, as consultorias privadas e públicas", afirmou ele, comentando que a demanda atípica da China no segundo semestre pelo segundo ano seguido coloca pressão para uma revisão.
Pelos números atuais, Roque afirmou que o Brasil não conseguiria exportar mais do que 72 milhões de toneladas em 2019. "Se continuar forte essa exportação, vai ter de importar, ou parar de exportar", comentou.
Para a analista Daniely Santos, da Céleres, não fosse a peste suína africana na China, que reduziu a demanda por farelo de soja no mercado chinês, o Brasil teria de virar uma espécie de intermediário comercial e eventualmente importar o grão para reexportar.
"Apesar dos estoques mínimos ao final de 2019, acredito que isso não vai acontecer", ressaltou ela.
A Céleres projeta estoques finais de apenas 1 milhão de toneladas, enquanto a Safras vê apenas pouco mais de 100 mil toneladas.
DIVERGÊNCIAS
Bastos, responsável pelas estatísticas da Conab, lembrou ainda que o IBGE, outro órgão do governo que realiza projeções de safras, tem números ainda menores --117,8 milhões para a safra 2018 e 113,15 milhões para 2019-- que os da companhia ligada ao Ministério da Agricultura.
Segundo o diretor da Conab, que assumiu o cargo em fevereiro com experiência de ter trabalhado em trading e consultorias privadas, a estatal está averiguando as divergências, um trabalho que pode passar por checagem de dados junto a seus mais de 900 informantes.
"Estamos averiguando a questão de área (plantada), se há alguma medida abaixo em alguma região, e depois a questão da produtividade...", disse.
Bastos comentou que o processo é moroso e desafiador, mas está sendo realizado. Ele comentou que os agentes no Brasil não têm obrigatoriedade de fornecer dados de estoques, algo que poderia ajudar no levantamento dos números.