Por Letícia Fucuchima
SÃO PAULO (Reuters) - A Presidência da República publicou um decreto nesta quinta-feira que altera a organização e atribuições da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), órgão técnico do setor elétrico, em um movimento que pegou de surpresa o mercado e foi visto como negativo por mexer na governança do setor.
Uma das principais mudanças é o aumento do número de conselheiros da CCEE, de cinco para oito membros, com previsão de mais indicações por parte do Ministério de Minas e Energia e "voto de minerva" do presidente do colegiado indicado pelo governo.
De natureza privada, a CCEE é uma das principais instituições do setor elétrico brasileiro, agindo como viabilizadora das operações de comercialização de energia, que movimentam bilhões de reais em contratos dos mercados livre e regulado.
A entidade, que é regulada pela Aneel, faz gestão e liquidação financeira das operações de compra e venda de energia no mercado livre, organiza os leilões de energia do mercado cativo, cuida da cobrança de encargos do setor, entre outras atribuições.
Anteriormente, o conselho de administração da CCEE era composto por cinco membros, com o governo tendo direto a indicar apenas o presidente do colegiado. Os outros quatro membros eram indicações do "mercado", isto é, dos agentes dos segmentos de geração, distribuição e comercialização de energia.
Com a alteração desta quinta-feira, o Ministério de Minas e Energia terá direito a indicar três conselheiros para a CCEE, além do presidente, que passa a ter voto de qualidade quando houver empate nas deliberações. O mercado mantém as outras quatro indicações.
Os mandatos dos conselheiros foram encurtados de quatro para dois anos, mas passaram a ser permitidas duas reconduções, em vez de uma.
Na avaliação de agentes do setor elétrico, a mudança abre espaço para ingerência política em decisões que deveriam ser estritamente técnicas, além de alterar o equilíbrio de forças em um elo importante da governança do setor elétrico brasileiro.
"Independentemente de qual governo seja, qualquer um que estiver no poder poderá ter ingerência política na CCEE, isso subverte o papel da Câmara, que deve ser técnico", afirmou Raphael Gomes, sócio de energia do Lefosse Advogados, que trabalhou por anos na área jurídica da CCEE.
"Ela precisa ter imparcialidade porque toma decisões singelas que mexem no bolso dos agentes e do consumidor brasileiro", acrescentou Gomes, lembrando que a CCEE analisa diariamente questões como desligar agentes do mercado por infringir regras de comercialização de energia, cancelar registro de contratos por operações atípicas, entre outros.
Uma fonte do setor elétrico, que pediu para não ser identificada, disse que na prática o decreto "estatiza" a CCEE e fragiliza a governança do setor elétrico.
"A Câmara de Comercialização foi estatizada, passou a ser um departamento do ministério... E isso é muito delicado, porque as informações da Câmara são do mercado, eu acho grave essa mudança", avaliou.
"Esse sistema de governança do setor elétrico dá trabalho, mas é um sistema que protege o setor e o consumidor, ele precisa ter mecanismos de defesa", ressaltou a fonte.
Mário Menel, presidente do Fórum de Associações do Setor Elétrico (FASE) e da Associação Brasileira dos Investidores em Autoprodução de Energia (Abiape), disse ver como equivocada a mudança na composição do colegiado da CCEE.
"A não ser que seja coisa excepcional, sempre vai cair a favor do governo... Em uma casa de mercado, me parece que é uma decisão equivocada, acho que deveria ser mais mercado e menos governo."
Ele apontou ainda que o conselho passou a ter poder de aprovar o orçamento da CCEE na maioria dos casos, em vez da assembleia geral. "Quem paga são os agentes privados e quem controla esse dinheiro, quem estabelece o quanto deve ser pago, é o governo na prática."
Outra fonte que também pediu anonimato avaliou que o decreto pode apresentar problemas jurídicos.
"A CCEE é uma associação sem fins lucrativos regida também pelo Código Civil, que deve ser observado. O governo esvaziou a Assembleia e encampou a CCEE. Parece haver nitidamente um conflito aí", disse.
A CCEE enviou nota na qual não comenta eventuais riscos de ingerência do governo. Afirmou apenas que houve "avanço significativo" para aprimorar sua governança corporativa, preparando o órgão para lidar com mudanças como a abertura do mercado livre, e que vai trabalhar para implementar as alterações no estatuto social necessárias ao cumprimento do decreto.
Procurado, o Ministério de Minas e Energia não respondeu imediatamente a um pedido de comentário sobre o assunto.
OUTRAS MUDANÇAS
O decreto desta quinta-feita também cria uma diretoria para o órgão, que antes operava apenas com conselho de administração e uma superintendência.
Na avaliação de Gomes, do Lefosse Advogados, essa é uma mudança positiva para a CCEE, já que antes quem fazia informalmente a função executiva era o próprio presidente do conselho de administração, que costumava ser eleito como superintendente.
"Acabava que a CCEE não tinha essa diferenciação que é saudável, vemos pelas empresas o quanto é importante ter uma diretoria que está no dia a dia fazendo a execução e um conselho de administração com visão mais estratégia."
Também foram ampliadas as atribuições da CCEE com atividades que já vinham sendo desempenhadas nos últimos anos, à medida que a instituição foi se modernizando e agregando novas pautas do setor elétrico. O decreto prevê que ela possa atuar, por exemplo, em sistemas de certificação de energia e prestar serviços educacionais, de tecnologia e outros relacionados ao mercado de energia.
(Por Letícia Fucuchima)