Por Amanda Perobelli e Lisandra Paraguassu
ELDORADO DO SUL (Reuters) - Foram três dias de chuvas fortes até Edite de Almeida e João Engelmann decidirem que não tinham escolha a não ser sair de casa, soltando seu pequeno rebanho leiteiro em terras mais elevadas.
A água no assentamento Integração Gaúcha, em Eldorado do Sul, a 70 quilômetros de Porto Alegre, já chegava a 1,5 metro de altura. No dia seguinte, alcançou o telhado das casas.
A enchente sem precedentes que devastou o Rio Grande do Sul, matando ao menos 169 pessoas e deixando milhares de desabrigados, destruiu a comunidade de pequenos produtores que fez sua vida há mais de 30 anos entre as margens do rio Jacuí e o lago Guaíba.
Das 60 galinhas poedeiras do casal, apenas oito sobreviveram. As vacas sobreviveram, mas não têm onde pastar na paisagem inundada.
"Se eu for avaliar tudo que eu perdi dentro de casa a perda é grande. Mas eu não perdi, eu estou viva, toda a família está viva", disse Edite à Reuters na manhã de um domingo frio no galpão onde ela, a família e vizinhos do assentamento buscaram abrigado.
"Eu não lamento muito não, eu agradeço, porque teve muitas perdas muito piores do que a minha. Eu agradeço por estar bem, por estar conseguindo sobreviver, e lamento pelas pessoas que perderam família", afirmou.
Durante as enchentes, Engelmann fez viagens diárias a pé, de trator e de barco para levar ao rebanho todo alimento que encontrava. Ele voltava encharcado todas as noites depois de percorrer as fazendas com amigos, ajudando a retirar o gado morto e cuidando dos sobreviventes.
Um vizinho encontrou um porco morto em seu quarto. Por toda parte, campos de arroz e outras plantações foram destruídos.
Depois de 10 dias, quando a água começou a baixar, Edite foi pela primeira vez ver a situação da casa que construiu e montou com muito sacrifício há 18 anos. Era hora de começar a limpar e reconstruir, e a família sabe o que significa isso.
A história do casal começa na década de 1980, em um acampamento em Cruz Alta, no centro do Rio Grande do Sul, onde nasceu o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) no Brasil.
Na espera por um lote de terra, os dois casaram e tiveram filhos, até chegar ao assentamento em Eldorado, organizado pelo governo do Estado -- o terceiro assentamento da história do movimento no país -- junto com 30 outras famílias.
Ali são produzidos boa parte do arroz orgânico do MST, que ficou famoso no país, além de hortaliças, leite, ovos e suínos, em um patamar que permitiu às famílias um padrão de vida estável, com casas equipadas e filhos na universidade.
As inundações, no entanto, vão fazer com que tenham de começar tudo de novo.
"Eu já passei por isso quando a gente era acampado. A dificuldade de cozinhar, de dormir. Eu já aprendi a viver isso daí, mas não pensava que fosse voltar a fazer de novo", disse Edite.
Dados levantados pelo MST apontam que 170 famílias perderam toda a produção de frutas e hortaliças, com valor estimado em torno de 35 milhões de reais. Na produção de leite, a conta chega a 3 milhões de reais com perdas de animais, galpões, maquinário e leite não entregue.
Inácio Hoffmann, de 60 anos, um dos vizinhos mais próximos do casal, não teve a mesma sorte. Dos seus 22 animais, 13 morreram. Nos primeiros dias não conseguia falar do acontecido sem chorar.
"Falar é muito difícil, é muito recente. Eu tenho 60 anos, sou aposentado há quatro meses... faz um tempo que estava pensando em mudar. Talvez seja a hora", disse.
O cansaço está no rosto de todos. A limpeza das casas, o recolher dos animais mortos, contar os prejuízos das hortas e campos de arroz alagados e destruídos, as noites insones pelo frio e pela preocupação marcam o dia dos assentados.
Voltar, ninguém ainda conseguiu. Alguns, como Hoffmann, pensam em desistir. Outros, como Edite, estão determinados a prosseguir.
"Aos pouquinhos a gente vai voltando. Chegamos do nada. Voltamos para o nada e vamos começar de novo", disse.
(Reportagem de Lisandra Paraguassu e Amanda Perobelli)