Por Gram Slattery e Anthony Boadle
RIO DE JANEIRO/BRASÍLIA (Reuters) - Em um depósito de tijolos nos arredores do Rio de Janeiro, dezenas de trabalhadores passaram a sexta-feira enchendo caminhonetes com sacos de feijão, arroz, farinha e outros itens básicos a serem distribuídos pelas favelas da região.
Para milhares de moradores da terceira maior cidade da América Latina, esses alimentos são fundamentais para enfrentar uma situação que muitos temem ser tão mortal quanto o novo coronavírus: a fome.
As regras de isolamento afetaram abruptamente a renda dos brasileiros mais pobres e jogaram dezenas de milhões de trabalhadores do setor informal nas fileiras dos desempregados.
No Brasil, grandes avanços foram feitos para erradicar a fome na primeira década deste século, quando um sexto da população foi tirada da pobreza. Para muitos agora no Rio, seu retorno é devastador.
Rosana de Paula, de 37 anos, que mora na cidade de Duque de Caxias, nos arredores do Rio, ganhava a vida antes da quarentena separando materiais recicláveis do lixo em uma cooperativa local. Mas, como o trabalho secou, o mesmo ocorreu com sua renda. Na geladeira, há pouco mais do que água, uma fatia de queijo e berinjela, doada por restaurantes da cidade.
“É muito difícil”, disse ela. “Quando eu estava trabalhando, chegava o final de semana eu fazia a minha feira e a minha geladeira não estava farta, mas também não estava faltando. Mas agora só fica assim: água e algumas coisinhas que me dão.”
Embora não existam estatísticas nacionais sobre o aumento da fome desde a pandemia, grupos humanitários disseram que já estão lutando para intensificar os programas alimentares, desviando dinheiro de outras áreas para levar encomendas a pessoas como Paula.
Eles alertam que o novo coronavírus causará fome em uma escala nunca vista em décadas, agravando a pobreza que já estava aumentando devido a cortes nos programas sociais depois que o Brasil entrou em uma recessão profunda e duradoura em 2015, em meio ao colapso dos preços das commodities.
A tragédia crescente colocou em foco o custo humano dos bloqueios que, segundo especialistas em saúde, são necessários para retardar a propagação do vírus.
É provável que essa crise forneça munição ao presidente Jair Bolsonaro, que repetidamente ridicularizou as medidas de distanciamento social de linha dura como um "veneno", cujas consequências econômicas poderiam ser mais perigosas que o Covid-19.
Apesar de o Brasil ser um dos principais exportadores de alimentos, organizações humanitárias dizem que há famílias que ficam sem comer uma refeição por dois ou três dias em comunidades pobres. Agora, as ONGs estão se esforçando para intensificar seus programas alimentares para levar cestas a famílias carentes.
“A gente tem mais de 30 milhões de profissionais informais no Brasil inteiro que simplesmente do dia para noite foram jogados para extrema pobreza porque com a quarentena não podem trabalhar", disse Kiko Afonso, diretor-executivo da organização não governamental Ação da Cidadania, que está distribuindo toneladas de comida no Rio e em várias outras cidades brasileiras.
“As famílias nesta faixa de renda não têm crédito, não têm poupança, e sem renda passam a não ter absolutamente nada para usar para alimentos.”
COMIDA MESMO
O Congresso aprovou no final de março um pagamento mensal em dinheiro de 600 reais a trabalhadores informais que perderam sua renda, um programa de emergência que custará 98 bilhões de reais ao governo e beneficiará 54 milhões de pessoas. Mas especialistas dizem que isso não será suficiente para alimentar as famílias que estão passando para a extrema pobreza.
A pandemia atingiu o Brasil no momento em que a maior economia da América Latina ainda luta para superar uma recessão de 2015-2016 e lida com cortes em programas sociais que ajudaram a livrar 30 milhões de pessoas da pobreza e tiraram o Brasil do mapa da fome do Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas em 2014.
Mais de 3 milhões de brasileiros caíram abaixo da linha de extrema pobreza entre 2014 e 2018, disse Marcelo Neri, especialista em desigualdade do FGV Social na Fundação Getúlio Vargas, no Rio.
Mais de 13 milhões de brasileiros foram considerados em extrema pobreza no final de 2019, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Especialistas dizem que esse número aumentou significativamente, pelo menos temporariamente.
A Caritas, organização católica de assistência, disse que as famílias brasileiras mais pobres já estavam sofrendo o impacto das políticas de austeridade, e a crise econômica agora tornará difícil colocar comida na mesa.
A Caritas está reorganizando seus programas para se concentrar no aumento da demanda por alimentos, disse seu diretor executivo no Brasil, Carlos Humberto Campos.
“Agora não dá para fazer outra coisa. Agora é comida mesmo, pessoas estão precisando de comida”, disse.