Por Pedro Fonseca
RIO DE JANEIRO (Reuters) - Responsável por uma de cada quatro mortes por Covid-19 no mundo a cada dia, o Brasil atingiu nesta quarta-feira a sombria marca de 300 mil vidas perdidas pela doença causada pelo novo coronavírus, um número que poderia ser menor, segundo especialistas, não fosse pelo negacionismo do presidente Jair Bolsonaro e a consequente avalanche de erros no enfrentamento à doença.
Enquanto o mundo tem avançado no combate à pandemia com vacinas e medidas restritivas para evitar a circulação do vírus, o Brasil vive atualmente seu pico da doença, com mais de 75 mil casos novos por dia em média, após a descoberta de uma nova variante originada em Manaus que se dissemina mais rápido e consegue driblar anticorpos de infecções anteriores.
A vacinação no país segue em ritmo lento, com atrasos no cronograma de produção e seguidas reduções nas promessas de doses a serem entregues após uma demora do governo em negociar com laboratórios, o que deixa o país sem uma perspectiva de resolver a crise no curto prazo.
"O cenário pelas próximas semanas será bem difícil", disse à Reuters o ex-ministro da Saúde Nelson Teich, que ficou menos de um mês no cargo no ano passado e deixou o governo por diferenças com Bolsonaro no enfrentamento à pandemia.
"Nossos programa de vacinação está lento. Se você entra no período de distanciamento sem a vacina chegando junto você não tem previsão para sair do distanciamento, e com as pessoas exaustas depois de tanto tempo de pandemia, a chance de você conseguir fazer isso é bem difícil", acrescentou.
A situação de completo caos, com colapso do sistema de saúde na maioria das capitais brasileiras pela superlotação dos leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) e escassez e medicamentos e até de oxigênio, levou governadores e prefeitos a recorrerem a medidas mais firmes de quarentena que não eram vistas desde o início da pandemia no ano passado.
Os resultados, no entanto, só virão nas próximas semanas, e enquanto isso pacientes têm morrido em diversas cidades sem conseguir atendimento, uma vez que 25 dos 27 Estados estão na zona crítica de ocupação de leitos de (UTI), com índice superior a 80%, ainda como reflexo da alta transmissibilidade ocorrida a partir das festas de final de ano.
Com mais 2.009 mortes registradas nesta quarta, o Brasil se tornou apenas o segundo país do mundo a passar dos 300 mil óbitos por Covid-19, depois dos Estados Unidos, totalizando 300.685 óbitos causadas pela doença.
Apesar da eficácia das medidas de isolamento atestada em outros países e mesmo no Brasil no primeiro momento da pandemia, Bolsonaro tem batido de frente com os governadores que as defendem e chegou a ingressar com ação no Supremo Tribunal Federal (STF) para derrubá-las -- até o momento sem sucesso.
Segundo o ex-ministro Teich, a situação no Brasil ainda "pode piorar muito" se a transmissão da doença não for controlada nacionalmente por meio de uma série de medidas, incluindo testagem, rastreio de casos, isolamento de pessoas infectadas, quarentenas e pagamento de auxílio financeiro para as pessoas poderem ficar em casa.
"A doença agora está ditando a própria evolução, porque a gente não está conseguindo ter capacidade de controlar. É uma situação difícil", afirmou.
VARIANTE DE MANAUS
Erros na resposta à pandemia cometidos pelo presidente ou motivados pela postura dele estão por trás do número avassalador de mortes no país, na avaliação de especialistas.
"O que nós tínhamos que ter feito para evitar esse número impressionante de mortos era ter governo", disse à Reuters o sanitarista Gonzalo Vecina Neto, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP e ex-presidente da Anvisa.
"Tendo governo, haveria ação. E qual ação? A principal ação que nos deveríamos ter adotado é o isolamento social, reduzir o número de encontros, porque essa doença ocorre pela existência dos vários contatos", acrescentou, citando também a demora para compra de vacinas.
O governo federal demorou vários meses a adquirir imunizantes à medida que Bolsonaro colocava em dúvida a eficácia das vacinas e atacava com insistência os planos do Instituto Butantan, ligado ao governo de São Paulo, de trazer ao país a chinesa CoronaVac, da Sinovac, atualmente a vacina responsável por quase 80% da imunização no país.
O Ministério da Saúde agilizou a compra da CoronaVac somente após o governador de São Paulo, João Doria, anunciar o início da vacinação no Estado independentemente do governo federal. E apenas depois de ver a popularidade do governo afetada pela demora na vacinação, o presidente passou a apoiar a aquisição de imunizantes de diferentes laboratórios, que só serão entregues nos próximos meses.
A vacina da AstraZeneca, que originalmente era a aposta única do governo federal, tem enfrentado problemas de fornecimento ao redor do mundo, o que afetou o cronograma da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) para produção local. O Ministério da Saúde divulgou originalmente um cronograma que previa 16,9 milhões de doses da Fiocruz em março, mas o número foi reduzido para menos de 4 milhões, e nesta semana a fundação voltou a reduzir a previsão de doses, desta vez para abril, de 30 milhões para 18,8 milhões.
Na terça-feira, em pronunciamento, Bolsonaro defendeu a vacinação da população, em uma mudança de rumo após ter sofrido uma queda em sua popularidade recentemente.
Enquanto atacava a vacinação, Bolsonaro sempre defendeu o uso de medicamentos sem eficácia comprovada contra a Covid, com destaque para a hidroxicloroquina e a ivermectina -- apesar dos riscos de efeitos colaterais. Nesta semana, a Associação Médica Brasileira (AMB) afirmou que a utilização desses medicamentos deve ser banida do combate à pandemia.
A piora da situação no país ocorreu após o espalhamento da nova variante P.1, originada no Amazonas, que está atualmente entre as principais em circulação no país. Uma resposta rápida do governo federal fechando as fronteiras do Estado para viagens não essenciais poderia ter contido esse avanço.
"Assim que ela surgiu em Manaus, deveríamos ter fechado as fronteiras, como foi feito com Wuhan na China no começo da pandemia", disse o epidemiologista Pedro Hallal, da Universidade Federal de Pelotas, que coordenou um estudo nacional sobre a Covid-19 no passado.
CAPITAL DO NEGACIONISMO
A semana epidemiológica encerrada no último sábado marcou o novo recorde de mortes desde o início da pandemia, com uma média de 2.235 por dia, um aumento de 22,5% em relação à semana anterior, que acumulava o maior número de óbitos até então desde o início da pandemia.
A primeira morte por Covid-19 no Brasil foi anunciado por autoridades de saúde no dia 17 de março. Foram praticamente três meses para chegar em 50 mil mortes, e mais 50 dias para se chegar a 100 mil, em 8 de agosto.
De 100 mil a 200 mil mortes foram mais 5 meses, mas a terceira centena de milhar de óbitos foi acumulada em apenas dois meses e meio, em um marco da aceleração brutal das mortes causadas pela doença.
Só na última terça-feira foram mais de 3.250 mortes registradas -- um recorde desde o início da pandemia que elevou a média diária dos últimos sete dias para 2.300, mais que o dobro das 1.100 dos Estados Unidos, o segundo país com mais óbitos por dia atualmente, e cinco vezes o número do México, o terceiro.
"Era inevitável que num país de dimensões continentais como o Brasil tivéssemos muitas mortes, mas dessas 300 mil mortes, 225 mil poderiam ter sido evitadas não fôssemos a capital mundial do negacionismo", disse Hallal, comparando o percentual da população brasileira em relação à população mundial com o percentual de mortos por Covid-19 no país em relação ao restante do mundo.
"O Brasil hoje é o líder mundial da Covid-19 e pela linha que a gente observa a situação tende a se agravar."