O governo provocou na semana passada uma corrida nas redes varejistas com a revogação, pelo Ministério do Trabalho, de uma portaria de 2021 que permitia a abertura do comércio aos domingos e feriados a partir de um acordo entre o estabelecimento e o trabalhador, sem a necessidade de convenção coletiva e intermediação de sindicatos. A decisão foi considerada por dirigentes de entidades e executivos de empresas do setor um entrave a mais em um ano já difícil para os negócios.
Além desta ação, o governo permitiu, em agosto, que produtos de até US$ 50 fossem comprados com isenção de imposto de importação, junto com a implantação do programa Remessa Conforme.
Como consequência, dezenas de varejistas tiveram de recorrer a pedidos de proteção judicial e extrajudicial contra credores. Além disso, entre as empresas da área listadas no Ibovespa, há ações cujas perdas superam 75% no ano, como no caso do Carrefour (BVMF:CRFB3). Só Raia Drogasil (BVMF:RADL3) acumula ganhos desde janeiro.
"É preciso entender que, quando o varejo é afetado, há impactos em toda a cadeia de valor do consumo: a indústria que fornece aos lojistas e os serviços que os atendem também entram nesse processo de deterioração", diz Marcos Gouvêa de Souza, diretor-geral da Gouvêa Ecosystem.
NEGOCIAÇÃO COLETIVA
Sobre a volta dos sindicatos à negociação da abertura aos domingos e feriados, João Pedro Eyler Póvoa, sócio da área trabalhista do Bichara Advogados, diz que haverá custos e trabalho extras para a vida já atravancada das redes. "As empresas, que durante 2022 e 2023 excluíram essa demanda das negociações coletivas, terão agora de negociar caso a caso, tanto em sindicatos nacionais quanto nos estaduais e municipais. Em algumas empresas, serão 40 ou 50 acordos coletivos refeitos", diz. "Também terão de pagar homologações aos sindicatos para fecharem novamente esses acordos e estarão sujeitas a multas, caso não o façam. Terão despesas internas e mais demanda de trabalho em seus departamentos jurídicos. É mais custo na veia."
Os sindicatos, evidentemente, têm outra visão. Para eles, sua intermediação nas negociações era uma prática já adotada, e a iniciativa do governo trouxe de volta "a dignidade do trabalhador, que não tem voz para negociar individualmente com o patrão", diz Nilton Neco, presidente nacional do secretariado dos comerciários da Força Sindical.
PORTEIRA ABERTA
"Nos governos Temer e Bolsonaro, a porteira estava aberta para o patrão fazer o que queria", diz ele. "A negociação coletiva mostra que o País está em plena democracia e só voltamos a uma prática que já tínhamos, e era prevista em lei."
Para especialistas, mudança na regra traz custo e gera insegurança
A decisão do governo de recolocar os sindicatos nos processos de decisão sobre jornada de trabalho aos domingos e feriados reforça o modelo paternalista de Estado, criado na era Vargas, dizem os especialistas. Segundo eles, ainda, esses vai-e-vem nas regras trabalhistas gera custos e trabalho extra, além de trazer mais insegurança jurídica.
"O Brasil caminhava no sentido de evitar a presença do Estado em situações que não a demandem, mas não consegue ser estável nesse sentido", afirma Ricardo Almeida, assessor jurídico da Associação Brasileira das Secretarias de Finanças das Capitais (Abrasf) e procurador do município do Rio de Janeiro. "Continuamos a ter a tendência de tratar o trabalhador como hipossuficiente, num modelo de Estado varguista preocupado em tutelar interesses, mas só que o mundo mudou."
Isso porque, lembra Almeida, o varejo não compete mais com a loja da esquina, mas com todo o comércio eletrônico mundial. "Dificultar e encarecer a abertura de lojas é prejudicar muito uma realidade que precisa de altos investimentos para existir e que enfrenta um mundo novo, com mais home office, menos consumidores nas ruas e mais competição."
MIOPIA
Segundo João Pedro Eyler Póvoa, sócio da área trabalhista do Bichara Advogados, diversas varejistas clientes suas têm estudado formas para questionar a derrubada da portaria, provavelmente via mandado de segurança, pelo menos para os próximos feriados e domingos, num período bastante importante para os lojistas pela proximidade com Black Friday e Natal.
"O mais curioso é que não vemos, por parte dos trabalhadores, reclamações contra a abertura de lojas aos domingos e feriados", diz ele. "Geralmente é nesses dias em que eles mais vendem e ganham."
Outros especialistas têm visões parecidas. "A volta dos sindicatos em decisões privadas é uma miopia porque é querer olhar o futuro com óculos do passado", diz Gouvêa de Souza, da Gouvêa Ecosystem. "O que o governo faz é criar condições para aumentar custo operacional e, quando isso acontece, as empresas buscam alternativas para reduzir custos, seja com mais automação ou cortes de pessoal. É tiro no pé."
Na última quinta-feira, o senador Ciro Nogueira (PP-PI) encaminhou um projeto legislativo para sustar a decisão do Ministério do Trabalho. Para ele, a portaria viola a lei 13.874/19, que estabelece normas de proteção à livre iniciativa e ao livre exercício de atividade econômica e disposições sobre a condição do Estado como agente normativo e regulador.
Sem encontrar o apoio esperado junto ao governo, os varejistas também recorreram a parlamentares na questão da isenção de US$ 50 de importados via marketplaces internacionais, do Remessa Conforme. Empresas do setor conseguiram montar um movimento suprapartidário, com apoio de políticos do PT, PP, PSD e PL, para criar um projeto de lei que acabe com a isenção. Os políticos perceberam, junto a suas bases eleitorais, que o comércio chinês estaria destruindo pequenos negócios pelo interior do País e não apenas os grandes grupos empresariais.
Já o julgamento do STF, que determina uma escala de trabalho que favorece apenas as trabalhadoras mulheres do setor, vem sendo encarado como "uma demanda ao tribunal superior que envereda por construir normas de legislação de ampla repercussão, como vem acontecendo nos últimos anos", segundo Almeida.
A Riachuelo (BVMF:GUAR3) entrou com um recurso no STF, este mês, para tentar reverter uma decisão de setembro na qual a Primeira Turma do STF (composta por cinco ministros) manteve uma decisão do Tribunal Superior do Trabalho (TST) que obriga o comércio a dar folga às trabalhadoras aos domingos, a cada 15 dias.
O placar ficou apertado, 3 a 2, e os magistrados entenderam ser preciso dar tratamento diferenciado para garantir os direitos fundamentais e considerar a histórica exclusão da mulher do mercado de trabalho. Prevaleceu o argumento de que a regra do benefício feminino está prevista na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e é constitucional.
A Riachuelo quer levar a discussão para o plenário, onde mais ministros possam votar, e pede que a ação seja julgada em repercussão geral.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.