Por Marcela Ayres
BRASÍLIA (Reuters) - A implementação de um tributo nos moldes da antiga CPMF conforme planejado pelo governo para bancar a desoneração da folha das empresas impactaria a intermediação financeira de modo mais rápido e expressivo do que no passado, afetando a dinâmica de investimentos, a expansão do crédito e a quantidade de dinheiro vivo em circulação, avaliam economistas.
A expectativa é que, com um imposto onerando proporcionalmente mais, uma vez que a Selic está em mínimas históricas, haverá incentivo à realização de menos transações intermediadas por instituições financeiras, com empresas e famílias buscando mecanismos para escapar da tributação.
O encarecimento dos financiamentos, cujo volume aumentou muito nos últimos anos, será outro aspecto em jogo.
A CPMF começou a ser cobrada no país em 1997, com alíquota de 0,2%, e vigorou até 2007, quando já era de 0,38%. Nesse ínterim, a Selic foi de 21,7% a 11,25% ao ano.
Membros da equipe econômica têm agora falado de uma alíquota de 0,2% para o novo tributo, embora ainda não haja clareza quanto à sistemática de cobrança, se será apenas em uma ponta ou tanto por quem paga como por quem recebe. Como pano de fundo, o cenário do mercado para economia, pelo boletim Focus, é outro: Selic em 2% ao fim deste ano e 3% ao fim do ano que vem.
"Quando você tem outras cunhas, de juros, de inflação, tudo fica muito embaçado, fica uma nuvem em cima e o efeito não é transparente. Tudo cabe lá dentro, a pessoa nem percebe que está pagando", afirmou a diretora de Pesquisas da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), Maria Helena Zockun.
"Agora quando tudo isso é muito baixo, qualquer coisa que você coloque no sistema entre o custo efetivo sem impostos e o preço final fica muito mais evidente. Provavelmente isso aceleraria a tentativa de fugir desse imposto", acrescentou.
Para as empresas, isso tenderia a pressionar por uma verticalização da economia de maneira mais rápida e direta do que na época da CPMF. Na prática, os negócios buscariam abraçar mais etapas do processo de produção, ainda que sem especialização ou ganhos de produtividade, apenas para não arcarem com a tributação em cascata, disse Zockun.
O próprio Banco Central, no relatório Juros e Spread Bancário publicado em 1999, afirmou que a CPMF aumentava "muito" o custo do empréstimo.
No mesmo documento, o BC calculou que a CPMF, dentre os impostos sobre a intermediação financeira, é o que representa o maior entrave às operações das empresas, destacando que sua eliminação ou redução substancial estaria entre as medidas com maior impacto na diminuição do custo do crédito.
Para o economista-chefe da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), Rubens Sardenberg, a instituição de um imposto sobre transações seria um problema ainda maior para o mercado de crédito hoje, dado que o saldo de financiamentos também é mais representativo e importante para a economia.
No período de vigência da CPMF, o estoque de crédito no Brasil foi de 29,3% a 34,7% do Produto Interno Bruto (PIB). Agora, esse percentual é de 50,4% do PIB, conforme dados mais recentes do BC, de junho.
"Se lá atrás, quando a CPMF existia, o crédito estava iniciando seu processo de expansão, hoje ele já não é tão pequeno assim", afirmou Sardenberg, ressaltando que o efeito de uma nova CPMF seria gritante para operações de prazos menores.
Nos cálculos da Febraban, uma alíquota de 0,2% do novo tributo tampouco geraria arrecadação suficiente para fazer frente ao fim da contribuição patronal sobre a folha de salários. Seriam recolhidos cerca 51 bilhões de reais ao ano, contra uma necessidade de 200 bilhões a 250 bilhões de reais para esse propósito.
A alíquota do imposto precisaria ser de 0,47% para render ao governo os 120 bilhões de reais que têm sido ventilados pela equipe econômica para uma desoneração parcial, segundo a entidade, que avalia que isso representaria impacto significativo no custo do crédito.
BC E A DESINTERMEDIAÇÃO
O encarecimento na concessão de financiamentos viria num momento em que a preservação do crédito é vista como crucial para a retomada econômica no pós-coronavírus.
Em suas falas públicas, o presidente do BC, Roberto Campos Neto, tem repetido que a preservação desse canal é fundamental para definição da velocidade da recuperação da atividade.
Sobre um imposto como a CPMF, ele chegou a dizer publicamente que "sempre preocupa qualquer banqueiro central qualquer tipo de imposto que gere desintermediação financeira", embora tenha frisado que não cabia ao BC comentar assuntos tributários.
Em condição de anonimato, dois ex-diretores do BC ouvidos pela Reuters mostraram ressalvas quanto a um imposto do tipo, que iria na contramão da agenda almejada pela autoridade monetária de modernização, barateamento e transparência da intermediação financeira, com cada vez mais operações digitais, como as que serão possíveis com o Pix, plataforma de pagamentos instantâneos do BC que entrará em operação em novembro.
Mesmo que o governo estabeleça uma cobrança sobre o saque, é certo que parte das operações passará a ser feita com dinheiro em espécie, avaliou uma das fontes, acrescentando que não haverá como garantir a fiscalização e o recolhimento do imposto em situações como uma corrida de táxi ou a compra de um pão.
"As pessoas vão tentar evitar esse imposto usando mais papel moeda. E hoje em dia, com tecnologia, pode ser que surjam até outras formas de evitar o imposto que a gente nem está enxergando. É uma outra dimensão onde eu acho que avaliação do risco está incompleta", disse.
A segunda fonte que passou pelo alto escalão do BC pontuou que esse incentivo ao uso de papel moeda fará com que a sociedade arque com o custo de emissão de mais dinheiro, num momento em que o restante do mundo vai na direção contrária, mirando coibir o transporte e ocultação de valores usualmente associados à corrupção e lavagem de dinheiro.
Ainda que o BC tenha anunciado o lançamento da nota de 200 reais, com a qual o governo pretende economizar na impressão de numerário, um imposto como a CPMF demandará a circulação de mais cédulas de valores menores, para troco, destacou a fonte.
O governo ainda não fechou os termos da proposta que apresentará e, portanto, não se sabe como o novo imposto sobre transações incidirá sobre investimentos. De qualquer maneira, o debate chega num momento em que a dinâmica de diversas indústrias do sistema financeiro, como a de fundos, é colocada em xeque pelo novo patamar dos juros básicos.
Uma nova CPMF, portanto, poderia gerar uma volatilidade adicional num ponto que já foi colocado como nevrálgico pelo BC na análise dos riscos associados à diminuição da Selic e eventual comprometimento da intermediação financeira.
"Com juro baixo, qualquer alíquotazinha que você tribute ali, você vai no fundo comer um percentual gigante da rentabilidade. Você pode inviabilizar ou tornar muito pouco atraentes vários produtos que estão gerando uma revolução no mercado de capitais, na intermediação financeira do Brasil como um todo", disse a primeira fonte.
O diretor da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF), Marcos Catão, aponta ainda a contradição de o governo estudar um imposto cumulativo, que incide sobre todas as etapas de qualquer cadeia produtiva, num momento em que propõe a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) no lugar de PIS e Cofins justamente para que as empresas só paguem sobre o valor que agregarem a produtos ou serviços.
Ele argumentou que o encargo da uma nova CPMF suportado pelas empresas será invariavelmente repassado ao consumidor final, que arcará, portanto, com muito mais do que a alíquota paga apenas no momento da compra.
Questionado pela Reuters, o Ministério da Economia afirmou que Receita Federal só irá se manifestar a partir do anúncio oficial das próximas etapas da reforma tributária.