SÃO PAULO (Reuters) - Ao adaptar o romance póstumo de Jane Austen, “Lady Susan”, de 1871, o cineasta norte-americano Whit Stillman tem duas vantagens: a do tempo e da sua origem. Primeiro, os quase 150 anos que separam o original do filme “Amor e Amizade” fizeram aflorar o cinismo presente na obra da escritora – muitas vezes ignorado –, e o fato de o diretor ser americano aguça essa leitura da aristocracia pré-industrial inglesa.
Em sua obra, Stillman, que chegou a ser indicado ao Oscar em 1991 pelo roteiro de “Metropolitan”, sempre falou das convenções de uma classe alta que dão forma à sociedade, especialmente em períodos de transformação. Isso fica muito claro em sua obra-prima, “Os Últimos Dias da Disco”, cujo título explicita o momento – a virada dos anos de 1970 para os 1980, quando a transformação do gosto musical reflete um novo momento histórico, com a ascensão do neoliberalismo. “Amor e Amizade” é também sobre uma sociedade em transformação – como a obra de Austen. Em outras palavras: Stillman nasceu para dirigir Jane Austen.
A viúva Lady Susan Vernon (Kate Beckinsale) torna-se malvista numa sociedade rígida e reprimida quando é acusada de manter um caso com Lord Manwaring (Lochlann O'Mearáin), casado na época. O escândalo traz consequências graves para ela – mas não para ele. Sem dinheiro ou casa, a protagonista vive de favores sustentados por certa falsidade – não apenas vinda dela. Sua filha adolescente, Frederica (Morfydd Clark), está no colégio interno, que Lady Susan, em breve, não poderá pagar. Para assegurar o futuro da garota, a mulher pretende casar-se com Sir James Martin (Tom Bennett), um rico proprietário de terras.
Enquanto isso, quando se vê sem um teto, Lady Susan abriga-se na casa do cunhado Charles Vernon (Justin Edwards) e da mulher dele, Catherine (Emma Greenwell), cujo jovem irmão, Reginald DeCourcy (Xavier Samuel), faz uma visita ao saber da chegada da protagonista. Ele logo se interessa por Lady Susan, mas a família dele acha Frederica melhor partido.
Há também Alicia Johnson (Chloë Sevigny), jovem americana, confidente de Lady Susan, mas cujo marido (Stephen Fry), um nobre inglês, a proibiu de ver sua melhor amiga por causa dos recentes escândalos, ameaçando mandar a esposa de volta para Connecticut, se ela o desobedecer.
Como os romances de Austen, aliás, é um filme sobre o dinheiro – mesmo que este nunca seja explicitamente citado, mostrado. Sir James Martin, por exemplo, tem muito dinheiro e pouca cultura ou refinamento – seus comentários sobre o nome da propriedade, “Churchill”, ou a genialidade de William Cooper por ser capaz de escrever versos e poesia são ridículos. Mas, como ele é rico, ninguém ousa corrigi-lo – embora todos riam dele às escondidas.
Basicamente, trata-se de uma comédia, para a qual o termo “romântica” pode até ser aplicado por alguns. Entretanto, “Amor e Amizade” é mais cínico do que qualquer outra coisa, ao mostrar os jogos de interesse e poder, nos quais o amor tem muito pouco (ou nada) a ver. Estão todos preocupados com suas aparências e/ou o futuro numa sociedade bastante rígida, repressora e machista. O que, ao final, faz o título soar como a maior das ironias e cinismos: não há espaço para amizade, muito menos para o amor nesse universo.
(Por Alysson Oliveira, do Cineweb)
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