SÃO PAULO (Reuters) - No cinema de Steven Spielberg, o alienígena sempre teve uma função importante: a de materializar as contradições e ansiedades, sendo ou não de outro planeta, como o personagem-título de “E.T.”, que quer voltar para casa.
É, na verdade, toda uma série dessas figuras “deslocadas”: o soldado Ryan, cujo salvamento resulta na morte de vários colegas; o protagonista de “A. I. – Inteligência Artificial”, que sonha em ser humano; ou o presidente Lincoln, em sua luta pela abolição da escravatura. Em “O Bom Gigante Amigo”, o diretor apresenta não apenas um, mas dois desses personagens: o BGA (Mark Rylance) e Sophie (Ruby Barnhill).
Trabalhando com um roteiro de Melissa Mathison (a mesma escritora de “E.T”, e que morreu em novembro de 2015), a partir do livro de Roald Dahl, Spielberg parece ter feito um filme exatamente como ele queria – o que não é bem um elogio, neste caso.
Em outras palavras, não parece um filme para criança, com seu ritmo irregular, narrativa enfadonha, longa duração (que nunca se justifica). E, por fim, uma intervenção militar com ajuda de Ronald Reagan não é lá a melhor das ideias para colocar numa fábula.
Rylance – recém-oscarizado por “Ponte de Espiões” – interpreta (com ajuda de efeitos) o personagem-título, chamado apenas de BGA. Trata-se de um gigante encontrado pela órfã Sophie, que, primeiro, teme ser a próxima refeição da criatura, mas depois descobre que ele é amigável e hostilizado pelos seus pares exatamente porque não se alimenta de criancinhas.
Essa é só a primeira parte do filme, o que acaba impondo altos e baixos em sua estrutura, criando um clímax falso antes da metade. A partir de então, só se sucedem anticlímax e um efeito soporífero.
Situado numa espécie de Inglaterra de um universo paralelo, o longa começa com um orfanato à la Charles Dickens, numa Londres que parece uma mistura do presente com o passado. Quando Sophie, da janela de seu quarto na instituição, vê BGA fica com medo dele, e acaba sequestrada por ele – da mesma maneira que a mocinha de “King Kong”- e é levada para a Terra dos Gigantes, onde os habitantes são bem diferentes de BGA; são maldosos, atrapalhados e comem criancinhas.
O elemento emocional – aquele que fez milhões chorarem e torcerem para que E.T. conseguisse voltar para casa – não se concretiza aqui. Nem Sophie, nem BGA são capazes de despertar muita empatia (apesar das ótimas performances de dupla), especialmente porque a trama não define se seu motivo central é a amizade dos dois ou a luta de BGA contra os outros gigantes.
Há claras semelhanças com “E. T.” – não apenas a mesma roteirista –, quando uma criatura mítica (e tida como malvada) ajuda uma criança e é ajudada em troca. Diante de tudo isso, o mundo adulto é capaz, então, de perceber a inteligência e importância da ingenuidade, sagacidade e rebeldia da infância.
Ao mesmo tempo, em sua reta final, no Palácio de Buckingham, subverte os valores de simplicidade que eram princípios até então. O luxo e o banquete sem fim funcionam como um suborno infeliz pela perda da inocência. Sophie e BGA o aceitam de bom grado.
Para Freud, o conceito de “Estranho” está ligado a algo estranhamente familiar, que causa uma dissonância em sua compreensão, ao mesmo tempo atraindo e causando rejeição. O E.T. é assim, o BGA também – assim como esse filme de Spielberg.
Estão lá todos os elementos que se espera de suas produções, como um esmero técnico impressionante. Mas, ao mesmo tempo, as coisas não parecem estar em harmonia.
(Por Alysson Oliveira, do Cineweb)
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