SÃO PAULO (Reuters) - "Ricki and the Flash: De Volta pra Casa", de Jonathan Demme, poderia muito bem não passar de um show literalmente de Meryl Streep, que interpreta uma roqueira sessentona, com cabelos trançados, botinhas e calças justas. Sorte que o filme aspira a ser um pouco mais do que isso.
Ninguém espera menos do que perfeição de Meryl, e não só por causa de suas, até agora, 19 indicações ao Oscar, com três estatuetas resgatadas. A atriz de 66 anos é a primeira a reivindicar esse rigor em tudo o que faz.
Portanto, nenhuma surpresa que ela tenha passado meses aprendendo a tocar direitinho baixo e guitarra para encarnar Ricki, nome artístico da ex-dona de casa Linda Brummel, que um belo dia largou o marido Pete (Kevin Kline), três filhos e uma vida normalzinha em Indiana para trás em troca do sonho incerto de brilhar no rock'n'roll, na Califórnia.
O desafio musical de Meryl neste papel não era pouco.
Cantar, Meryl já tinha cantado, e até bem, em filmes como "A Última Noite" (2006), de Robert Altman. Mas tocar, não. Afinal, aqui ela contracena somente com músicos profissionais, todos veteranos. Sua banda é formada pelo baterista Joe Vitale, o tecladista Bernie Worrell e o baixista Rick Rosas, que tocaram com artistas do quilate de Etta James, dos Eagles e de Crosby, Stills & Nash, para citar alguns.
O outro integrante, Greg, é vivido pelo veterano roqueiro australiano Rick Springfield, que em quatro décadas de carreira vendeu 25 milhões de discos e acumulou vários prêmios.
A parte mais interessante deste roteiro, assinado pela premiada Diablo Cody (Oscar de roteiro original em 2008, por "Juno"), e certamente o que atraiu Meryl, é a possibilidade de discutir, nesta protagonista, algumas candentes questões femininas, como essa das escolhas de vida e a satanização de uma mulher, como Ricki, que teve coragem de abandonar papéis socialmente aceitos para viver um sonho pessoal.
Ainda que sua carreira artística não passe do emprego noturno num barzinho, o que a obriga a trabalhar de dia como caixa de supermercado para se sustentar.
Não que o filme discuta, por exemplo, a possibilidade de que a própria família, o marido à frente, tivesse tido flexibilidade suficiente para acolher o sonho de Ricki, tornando-se parceiro dela nisso.
A história não vai tão longe, nesse e em outros aspectos. O filme não aspira a ser mais do que divertido, agradável, com algumas nuances mais sérias, que no conjunto fazem a viagem valer a pena.
Longe da família há anos, Ricki é convocada pelo ex-marido numa crise de depressão da filha Julie (Mamie Gummer, filha de Meryl na vida real). A moça foi largada pelo marido e está numa pior. Mesmo havendo uma madrasta há anos na função materna, Maureen (Audra McDonald), o pai acha uma boa ideia trazer a mãe biológica de volta.
Certamente, esta volta é a oportunidade para Ricki confrontar suas culpas e as mágoas dos filhos, que também nunca tiveram a curiosidade de procurá-la. Naturalmente, desanda bastante o clima de suposta confraternização em que acontece o reencontro com os filhos, Josh (Sebastian Stan), que está de casamento marcado, e Adam (Nick Westrate), que é gay e o mais ressentido com o abandono da mãe.
Questões de gênero e também política (ironicamente, a roqueira liberada foi eleitora do republicano George W. Bush) permeiam a história, mas sem impor demais essa agenda ao filme. É de pessoas, de família, que se quer tratar. Nesse quesito, o elenco todo, não só Meryl, dá muito bem conta do recado.
A sequência final, no casamento de Josh, dá a chance de uma virada a Ricki de uma maneira simpática, ainda que sem nenhuma surpresa.
Com boa experiência também em documentários musicais, sobre Neil Young e Bruce Springsteen, Jonathan Demme conduz sua orquestra em segurança, sem sustos. E assina um filme que toda a família pode assistir, até a vovozinha mais careta, ainda que fale de algumas questões que ela talvez preferisse empurrar para debaixo do tapete.
(Por Neusa Barbosa, do Cineweb)
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