SÃO PAULO (Reuters) - Na obra do filipino Lav Diaz, mais do que na de qualquer cineasta contemporâneo, o tempo é o elemento determinante da narrativa. A maneira como o diretor o encurta ou distende define a forma como suas histórias serão contadas, sobrepondo, em alguns momentos, até a trama, por exemplo. A crítica do diretor ao presente se dá exatamente nessa manipulação do tempo em toda sua obra.
“A Mulher Que Se Foi”, vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza 2016, é enxuto em comparação com outros filmes do cineasta. Com 228 minutos – a título de comparação, “Canção para doloroso mistério”, exibido na Mostra Internacional de Cinema em São Paulo de 2016, tem 485 minutos –, este longa tem como protagonista uma mulher, Horacia (Charo Santos-Concio), que ficou presa por décadas por um crime que não cometeu.
Por esse argumento, se poderia até pensar num filme de Pedro Almodóvar: mulher passa 30 anos presa injustamente, até que uma colega confessa o crime. Posta em liberdade, a protagonista procura sua família, descobre que o marido morreu, reencontra a filha (Marj Lorico), e fica sabendo que o filho desapareceu. Enquanto o procura, promete vingar-se do ex-namorado que armou sua prisão, e acaba amiga de uma travesti epilética, Hollanda (John Lloyd Cruz). Mas os dois cineastas, Diaz e Almodóvar, não poderiam contar esse melodrama de maneira mais diferente, a começar pela opção de cores. Numa fotografia em preto e branco, assinada por ele mesmo, Diaz procura o destino de uma nação inteira em meio à tragédia de Horacia.
O realismo social da narrativa do filipino acontece em seu tempo próprio, o que não quer dizer que se trate de um filme lento – pelo contrário, há sempre algo acontecendo, a narrativa está sendo impulsionada a todo momento. Ao contrário, por exemplo, do português Pedro Costa ou do malaio Tsai Ming-Liang, para os quais a lentidão é uma presença constante que se impõe ao longo de suas narrativas. “A mulher que se foi” é um filme meditativo, no sentido de investigar as cicatrizes de uma ditadura de mais de duas décadas de Ferdinand Marcos – essa inquietação sobre o período é constante na obra do diretor.
O longa começa em 1997 e nunca perde o foco histórico: num programa de rádio, comenta-se a devolução de Hong Kong para a China, fato que não é um ponto de partida gratuito. Como em toda sua obra, Diaz está interessado nas consequências do passado colonial das nações e como isso se manifesta no presente.
Os trinta anos de encarceramento de Horacia são marcados pela alienação às transformações de sua família e do país. Na prisão, sem contato com o mundo externo, a ex-professora alfabetizava colegas. Sua amiga de cárcere, Petra (Shamaine Centenera-Buencamino), confessa ter sido coagida por Rodrigo (Michael De Mesa), homem rico e ex-namorado de Horacia, a armar uma cilada que resultou na condenação da protagonista. Agora em liberdade, ela se torna um dos pilares morais da região onde mora, cuidando de muitas pessoas necessitadas. Ao mesmo tempo, trama vingança contra o homem que destruiu sua vida, cuja ascensão o colocou no comando da criminalidade local. À noite, disfarçada e usando o nome de Renata, ela busca informações para concretizar sua revanche.
Trabalhando a partir de um conto do russo Liev Tolstói, “Deus vê a verdade, mas espera”, Diaz investiga os mecanismos do perdão e da culpa, em meio a um país que parece constantemente mergulhado numa extrema desigualdade social e num caos sociopolítico. No período em que a trama se passa, há uma onda de sequestros nas Filipinas. Deus é uma presença soturna em “A mulher que se foi”, o que combina perfeitamente com a fotografia sombria do longa. Ele julga silenciosamente, e as personagens pagam suas dívidas, mais cedo ou mais tarde. A questão que fica no ar, no entanto, é a do perdão. Quem pode perdoar? Os humanos ou apenas Deus?
Diaz realiza aqui uma releitura muito própria do noir – algo que ele já havia feito também em “Norte – O Fim da História”, de 2013, inspirado no romance “Crime e Castigo”, do também russo Fiodor Dostoievski – com todos os elementos do gênero, mas reorganizados de forma particular tendo como mediador um passado colonial que persiste nas feridas não cicatrizadas do presente.
O resultado é um filme exigente, que clama pela atenção do seu público, mas, ao mesmo tempo, tem muito a oferecer em troca – como uma das cenas mais belas que se verá numa tela de cinema este ano, quando Horacia e Hollanda cantam “Sunrise Sunset”, do musical “O violinista no telhado”. A música, originalmente, acontece numa cena de casamento, e é cantada pelos pais da noiva, que só então se dão conta de que ela não é mais uma garotinha. É a trilha perfeita para um filme no qual o tempo age de forma tão incisiva.
(Por Alysson Oliveira, do Cineweb)
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