“Por certo tempo, estive deitado num barracão em que estavam aquartelados os que sofriam de tifo exantemático, em meio a pacientes com febre alta e em pleno delírio, muitos deles às portas da morte. Mais um acaba de morrer. Que acontece pela enésima vez, sim, enésima vez, sem despertar um mínimo de reação ou sentimento? Fico observando como um companheiro depois do outro se aproxima do cadáver ainda quente; um lhe surrupia o resto de batatas encardidas do almoço; outro verifica que os sapatos de madeira do cadáver ainda estão um pouco melhores que os seus próprios; um terceiro tira o manto do morto; outro, afinal, ainda fica contente por surrupiar um barbante — imagine. Fico olhando, apático. Finalmente, dou-me um empurrão e me animo a convencer o enfermeiro a levar o corpo para fora do barracão (um galpão de chão batido). Quando ele resolve fazê-lo, pega o cadáver pelas pernas, fá-lo rodar em direção ao estreito corredor entre as duas fileiras de tábuas à esquerda e à direita, sobre as quais estão deitados os cinquenta enfermos acometidos da febre, para então arrastá-lo pelo chão acidentado até chegar à porta do barracão. Dali sobe dois degraus para fora, em direção ao ar livre (…). Com muito esforço ele se alça primeiro, e depois o morto. (…)
O meu lugar fica em frente à porta, do outro lado da barraca, próximo da única janelinha, um pouco acima do solo. Minhas mãos geladas se aconchegam à vasilha quente da sopa. Enquanto sorvo seu conteúdo sofregamente, por acaso dou uma espiada para fora da janela. Lá está o cadáver recém-tirado do barracão, a fitar as janelas de olhos esbugalhados. Há apenas duas horas eu estava conversando com esse companheiro. Continuo tomando a sopa. Se eu não tivesse ficado espantado com a minha própria insensibilidade, de certa forma por curiosidade profissional, esta experiência nem se teria fixado em minha memória, de tão pouco sentimento que o fato todo me despertou.”
Peço desculpas pelo longo trecho. É Vitor Frankl, no clássico “Em busca de sentido”, descrevendo os terrores de sua passagem por campos de concentração, mais precisamente o momento em que o prisioneiro sai do estágio inicial do choque da chegada à apatia, em que a pessoa vai morrendo interiormente. Depois de experimentar sensações de extrema tortura (física e psicológica), o prisioneiro desenvolve um mecanismo de autoproteção da psique, em que se reduz a percepção da realidade para focar-se exclusivamente na sobrevivência. “O nojo, o horror, o compadecimento, a revolta, tudo isso nosso observador já não pode sentir nesse momento. Padecentes, moribundos ou mortos constituem uma cena tão corriqueira, depois de algumas semanas num campo de concentração, que não conseguem sensibilizá-lo mais.”
Apesar de descrever com sensibilidade e, quase mesmo, poesia os horrores de um campo de concentração (nada me parece tão trágico quanto essa experiência), Frankl consegue encontrar um refúgio em si mesmo, capaz de nutri-lo com algum otimismo. Como se a felicidade ou, sei lá, a capacidade de enfrentar a vida de forma altiva estivesse sempre dentro da gente. Entre o espaço de tempo, ainda que infinitesimal, de um impulso externo e a nossa reação, ainda houve como oferecer ao mundo (e, quem sabe, a nós mesmos) algo mais arejado, auspicioso, encantado até.
Eu me peguei capturado por esse trecho enquanto lia pertinente relatório do JP Morgan da semana passada.
(Esclarecimento necessário: não pretendo conferir qualquer paralelismo ou comparação entre as coisas; nada se assemelha aos horrores do holocausto. Tenho o mais absoluto respeito pela História. Aqui me refiro exclusivamente ao estágio psicológico da apatia, que pode nos atropelar depois de semanas, meses ou anos de tortura física, mental ou financeira. Volto ao contexto.)
Trecho do documento dizia, em tradução livre, algo mais ou menos assim:
“Os investidores se mantêm atônitos, como se fosse tarde demais para vender ou hedgear suas posições; e cedo demais para comprar.”
O mercado parece também tomado pela apatia, como se assistisse perplexo, de um lado, às preocupações sobre inflação e recessão, e, de outro, à atratividade de certos valuations. O investidor médio parece se esquecer que gestão de recursos se faz diariamente, reagindo às informações marginais e ao comportamento do preço dos ativos de maneira dinâmica. Como dizia o filósofo Ramiro, “Bolsa tem todo dia.”
Até mesmo a filosofia do “buy and hold” empresta uma expressão com potencial para render interpretações equivocadas. “Comprar e segurar” não significa “comprar e esquecer”. A ideia da cartilha buffettiana é adquirir um ativo hoje por um preço inferior ao seu valor justo, calculado com a devida margem de segurança, esperando uma convergência entre as coisas. Num primeiro momento, imagina-se que essa convergência vai levar um certo tempo; por isso, a ideia é que se compre algo com a intenção de segurar até que o mercado todo perceba o valor intrínseco e ocorra uma atração das cotações por magnetismo a essa entidade intangível.
Agora, isso não significa uma espécie de casamento católico em que não há separação. Você casa, acha que as coisas vão durar para sempre, maaaas…. nem sempre é assim. Em muitas situações, o divórcio parece uma decisão superior.
O investimento, também sob a ótica buffettiana, vai pelo mesmo caminho. Você compra vendo um preço mais baixo do que o valor intrínseco estimado. Isso não significa abandonar qualquer tipo de acompanhamento e/ou ficar alheio (ou apático) aos acontecimentos. Ao contrário, mesmo no “buy and hold”, se você compra algo hoje, amanhã mesmo, ainda que tenha comprado para longo prazo, você vai reavaliar sua posição, tanto o preço quanto o valor intrínseco, porque essas coisas não são estáticas e imutáveis. A velha ideia: “se as coisas mudam, eu mudo de ideia, e você?”
Ainda que as mazelas externas possam tentar nos empurrar para uma postura mais apática e de desinteresse perante nossos investimentos, precisamos rejeitá-la, encontrando, dentro de nós mesmos, alguma capacidade para continuar reagindo de forma dinâmica, ainda que seja o mero instinto de sobrevivência.
Três prescrições diante dessa ideia:
— Se o cenário é ruim ou os preços não são convidativos, ainda que um movimento de baixa já tenha começado, pode não ser tarde para proteger determinadas posições. Os tais “bear market rallies” são comuns e extensos dentro de tendências de baixa mais pronunciadas. Ainda existem ações caras nos universos de “growth” (crescimento) e tecnologia, por mais incrível que pareça. Lembre-se de que a média recente de múltiplos contempla um ambiente de excessiva liquidez, juros extraordinariamente baixos e complacência com riscos. Talvez a comparação com esse período leve a conclusões precipitadas.
— A inação também é uma decisão. Depois da análise atualizada e dinâmica do cenário, você pode optar por não fazer nada novo. A ânsia por uma atitude nova muitas vezes amplifica decisões ruins. No Brasil, você é muito bem pago para esperar — 14% ao ano com liquidez diária e sem risco de crédito ou um juro real ex-ante de 8,5% são alternativas bastante convidativas. Não confundir essa espera deliberada no CDI com apatia; ter caixa serve inclusive como uma postura altiva para aproveitar eventuais novas oportunidades que venham a surgir no caminho.
— Já há boas barganhas na Bolsa brasileira, sobretudo em ações com múltiplos baixos, vantagens competitivas claras e longo histórico de crescimento dos lucros por ação. De maneira diversificada, com disciplina e paciência, o dinheiro novo pode ser alocado dinamicamente nesses ativos, com foco no longo prazo. Sempre que estivemos nesses níveis de valuation capturamos bons lucros de maneira subsequente (pensando em intervalos de anos).