Quando me mostraram aquele monte de brasileiro indo viajar, imaginei: devem estar indo para Ubatuba, tamanha a aglomeração. Estava enganado, por uma pequena margem. O pessoal ia para Omaha, à conferência da Berkshire Hathaway (NYSE:BRKa). Eu, acostumado ao trânsito da Oswaldo Cruz, preferiria ir a Budapeste.
Claro que prefiro a Europa como farol cultural e intelectual, mas as razões são outras. Embora admire, respeite e procure emular os conceitos do value investing clássico de Benjamin Graham e Warren Buffett, sempre achei George Soros mais profundo. Talvez seja até um tanto óbvio: Soros é filósofo, Buffett é um praticante. As razões importam pouco. Fato é que a ideia de um valor intrínseco (indissociável, inapartável, alheio ao mundo exterior) sempre me pareceu uma simplificação excessiva (e comprometedora) da realidade.
As ciências sociais e seus objetos de estudo sofrem de recursividade. A interferência do observador gera efeitos significativos sobre a realidade. O papel das expectativas na Economia é documentado já há bastante tempo, inclusive anterior ao “Investidor Inteligente”, de Graham. Os “espíritos animais”, despertados a partir das expectativas, estavam bem retratados na Teoria Geral, de Keynes, sendo determinantes para o funcionamento da economia. Soros avançou talvez como ninguém sobre o tema, em sua teoria da reflexividade. A realidade influencia sobre as expectativas, que, por sua vez, impactam a realidade. O processo dialético continua. Assim, o valor seria extrínseco (depende de variáveis alheias às características internas e particulares àquele ativo). Até Aswath Damodaran afirma que mesmo os valuations mais criteriosos dependem de uma narrativa, de uma história sobre o ativo em análise.
Os preços de mercado, muitas vezes, nos contam coisas sobre a realidade. O comportamento das ações brasileiras na sexta-feira é um exemplo de livro-texto do fenômeno.
Ao observar a valorização de nossas carteiras no último pregão, me lembrei do episódio de Romeu Zema no podcast Market Makers. Em resposta à confiança do governador de Minas Gerais na eleição de um candidato de direita para Presidente em 2026, o apresentador Thiago Salomão apresenta uma réplica, algo como: olha, mas será que o governo não poderia abrir a caixa de ferramentas e tentar uma série de medidas populistas para se reeleger? Zema rebate com uma argumentação na seguinte linha: pode. Mas também pode aparecer uma série de novos escândalos ou novas crises, o que afetaria ainda mais sua popularidade.
Desde então, tomamos ciência da falcatrua no INSS e convivemos com a trapizonga do IOF – negligencio a trapalhada do Janjismo com Xi Jinping pois essa já não faz mais preço, dada a frequência de pérolas da mais recente agraciada com a classe grã-cruz da Ordem do Mérito Cultural; tenho convicção de que, algum dia, descobriremos o que ela fez para merecer a tal medalha.
Usamos um imposto regulatório (extrafiscal, não arrecadatório; por isso, passível de implementação por decreto) para cobrir um rombo nas contas públicas. Desafiamos as melhores práticas internacionais e nos afastamos do compromisso firmado com a OCDE de caminhar rumo à extinção do IOF, um imposto que aumenta o custo do crédito e das operações cambiais, reduzindo a já castigada produtividade brasileira (lembra da CPMF?). Flertamos com controle da conta de capitais, para rapidamente voltar atrás na medida – ainda bem que retrocedemos, mas o recuo não retira a impressão de despreparo e amadorismo, tampouco deixa de sinalizar a direção do pensamento dos atuais formuladores de política econômica. Impusemos um imposto alto sobre aplicações grandes em VGBL, em novo empecilho à poupança de longo prazo.
Tudo isso apagou os efeitos positivos do freio na despesa de R$ 31 bilhões, acima do projetado pelo mercado (de R$ 10 bilhões), e da maior credibilidade da nova peça orçamentária, pois a anterior inchava receitas e comprimia despesas exageradamente. Gustavo Franco resumiu de forma simples e direta em sua coluna no Estadão: “o pacto desta semana foi bem ruinzinho”.
Apesar de tudo isso, as ações brasileiras, na média, tiveram um dia de alta na sexta-feira, mesmo diante de maior aversão a risco no exterior, causada pelo medo das tarifas de Trump sobre a União Europeia. Eis o recado do mercado: “assim serão os nossos dias ruins!”
Há explicações técnicas possíveis para a alta. Recorrendo ao mesmo Gustavo Franco, ele afirma: “Uma vez estabelecida a indisposição de o governo diminuir o tamanho do gasto, o ministro Haddad procurou oferecer ao país a política fiscal menos irresponsável possível, consideradas as circunstâncias.” A seu modo, circunscrito à direção inexorável dada pelo chefe, o Ministério da Fazenda tenta impedir algum tipo de ruptura. Assim, temos uma garantia (ou, ao menos, algo perto disso) de que o país não explode até 2026, quando então teremos uma rediscussão profunda sobre a rota.
Isso, inclusive, alimenta uma segunda questão relevante: com essa máquina de crises, será difícil a reeleição. “O que anima os mercados, mas ainda de forma tímida, é justamente a percepção de que a mudança vai ficando mais nítida. (…) Graças à preservação da democracia, vamos ter alternância”, arremata Gustavo Franco. Se você tem dúvidas sobre a capacidade da mudança do ciclo de economia política de guiar os mercados, recupere a inflexão entre os períodos de Dilma Rousseff e Michel Temer – entre 2016 e 2019, o Ibovespa se multiplicou por 3x.
Veja: não é um problema de comunicação apenas. O governo lê mal a situação. Erra no diagnóstico e, portanto, prescreve uma receita desalinhada à necessidade do paciente. A sociedade não tolera mais aumento de impostos. O próprio ministro se comprometera a não elevar a carga tributária. Além disso, a economia cresce acima do potencial. Em vez de fechar um pouco a torneira dos gastos fiscais, o governo anuncia novos subsídios (vale gás, nova tarifa de energia, ampliação do Minha Casa, Minha Vida, etc). Segue estimulando a demanda agregada, para uma oferta que cresce mais devagar. As consequências são óbvias: se a demanda aumenta e a oferta está parada, teremos mais inflação e mais importação (ampliação do déficit em conta corrente). Como aumentar a popularidade do presidente assim?
Outro erro de avaliação do governo: não identificar a amplitude dos impactos do novo IOF. Não se trata de pegar a Faria Lima ou o grande empresário. Permita-me a rápida anedota: no sábado, levei meus filhos ao teatro, naquela tentativa do pai platônico de introduzir os filhos aos clássicos. Fomos ver “O Mágico de Oz”. Parada obrigatória para guloseimas antes. O pipoqueiro não perdoou: “Ow, chefe, me ajuda e compra mais alguma coisa além da pipoca. Com esse novo IOF, vai ficar mais puxado pra mim.” Agora, pipoqueiro tem maquininha da Stone (NASDAQ:STNE) e antecipa recebíveis apertando dois botões. A classe média ou média-baixa não sonha mais em ser funcionária da Caixa, mas em empreender num pequeno negócio.
O trem das sete horas, o último do sertão, de Raul Seixas, aquele em referência à morte, parece chegar para esse governo. O mercado vai dando peso crescente à ideia.
A esse elemento, se soma a ideia de fim definitivo das altas da Selic. O IOF mais alto encarece o crédito e, na prática, representa uma deterioração das condições financeiras, um aperto monetário adicional. Os últimos moicanos esperando uma elevação adicional do juro básico revisam suas projeções. Aumenta a probabilidade de corte da Selic ainda neste ano.
Seja lá qual for a razão, os mercados atropelaram a notícia ruim do IOF, mostrando que há forças maiores em curso em favor do kit Brasil. Sinal bom em prol do “buy the dip” (compre na fraqueza). Há muita gente ainda sem exposição louquinha para comprar, sob o medo de ficar de fora. Talvez essa seja a última parada do trem antes do verdadeiro bull market.