SÃO PAULO (Reuters) - Indicado ao Oscar de documentário, “Eu Não Sou Seu Negro”, do diretor haitiano Raoul Peck, atravessa diversas camadas para tornar-se uma das mais vigorosas reflexões sobre as relações raciais nos Estados Unidos. E o faz a partir um livro inconcluso e inédito do escritor norte-americano James Baldwin (1924-1987).
Usando, na poderosa narração do ator Samuel L. Jackson, apenas as palavras de Baldwin, retiradas dessa obra interrompida (“Remember This House”) e de diversos outros de seus textos, o filme credita Baldwin, com muita justiça, como seu roteirista. E poderia atribuir-se ainda ao escritor a pecha de profeta – pois é impressionante como um homem que morreu há 30 anos foi capaz de ir tão fundo em suas análises do descompasso entre brancos e negros nos EUA.
Alternando imagens de arquivo, retratando as marchas pelos direitos civis nos anos 1960 e os protestos recentes de Ferguson e Baltimore, em torno das mortes de negros desarmados nas mãos da polícia, o filme ergue essa ponte temporal com implacável precisão e lucidez, fazendo justiça às análises de Baldwin, um incansável ativista da causa negra, a seu modo e em seus próprios termos.
Se nunca se negava a um posicionamento para falar do que estava errado no tratamento aos negros na América, Baldwin não atuava na linha de frente como seus amigos Martin Luther King Jr., Malcolm X e Medgar Evers. As armas do escritor eram sua língua afiada, que ele costumava exercitar em conferências e entrevistas – como uma antológica, no “The Dick Cavett Show”, vista no filme –e igualmente em seus ensaios, alguns deles utilizados em parte aqui.
Foi justamente a intenção de produzir um livro sobre King, X e Evers que nutriu as reduzidas mas inflamadas páginas de “Remember This House”, como se depreende das cartas enviadas por Baldwin a seu agente. Sua ideia então, meados dos anos 1980, era relacionar as vidas daqueles três homens que ele tão bem conhecera, e tinham sido assassinados antes de completarem 40 anos num intervalo de apenas 5 anos (Evers, em 1963; X, em 1965; King, em 1968), com a sua própria vida. E, assim, falar da história da América que, a seu ver, nunca poderia ser dissociada da história das raças – e “não é uma história bonita”, como adverte o sempre lúcido Baldwin.
Lucidez, no caso do escritor, no entanto, não era sinônimo de desesperança. Ele apenas não queria ver escamoteada, como tantas vezes na História, a compreensão dos erros e crimes que impediam que brancos e negros fossem efetivamente iguais na América, arrastados a uma permanente espiral de violência por um histórico manchado por escravidão, leis de segregação e ativismo dos fanáticos da supremacia branca. Apesar de tudo isso, Baldwin dizia: “Não posso ser pessimista, porque estou vivo. Sou obrigado a ser otimista”.
Se vivo fosse, Baldwin poderia ser otimista pelo menos por mais uma razão. Depois dos protestos do ano passado pelos “Oscarsowhite” (“Oscar tão branco”, em tradução literal), pela ausência de concorrentes afro-descendentes entre nas principais categorias, em 2017, dos cinco candidatos ao Oscar de documentário, três abordam a temática racial nos EUA. Além de “Eu Não Sou Seu Negro”, o único a estrear por enquanto em circuito comercial no Brasil, abordam assuntos análogos “A 13ª Emenda”, da diretora afro-americana Ava DuVernay (“Selma”), e “O.J.: Made in America”, de Ezra Edelman, um trabalho de fôlego, uma série de cinco episódios, somando 8h30 de duração, sobre a ascensão e queda do astro de futebol americano O.J. Simpson.
(Por Neusa Barbosa, do Cineweb)
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