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Como o Brasil está moldando o G20 para dar voz ao Sul Global

Publicado 27.02.2024, 07:54
© Reuters. Presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante entrevista coletiva no Palácio do Planalto
26/02/2024
REUTERS/Adriano Machado

Por Lisandra Paraguassu e Leika Kihara e Marcela Ayres

BRASÍLIA (Reuters) - Ao assumir a presidência do G20 este ano, o Brasil trouxe para a presidência do bloco a determinação de colocar a voz do chamado Sul Global na mesa com as maiores economias do mundo e moldar as decisões para incluir anseios desses países, em um movimento que tem causado desconforto entre as nações mais ricas.

Dos sete países convidados pelo Brasil para fazer parte das negociações do bloco este ano, quatro fazem parte do chamado Sul Global: Angola, Egito, Nigéria e Emirados Árabes Unidos. Entraram ainda como convidados Bolívia, Uruguai e Paraguai, os países do Mercosul que não fazem parte do G20.

No ano passado, por pressão brasileira, a União Africana foi admitida como membro pleno do G20, um espaço antes reservado apenas para a União Europeia. Até então, o continente africano, que tem um Produto Interno Bruto (PIB ) conjunto de 3 trilhões de dólares, tinha apenas a África do Sul como representante.

A inclusão a União Africana como membro pleno tem um impacto decisivo em um dos principais objetivos do Brasil para sua presidência do G20, a reforma das instituições de governança global, inclusive as financeiras, como Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional (FMI), uma vez que o G20 influencia diretamente as decisões desses organismos.

Este ano será o primeiro em que a União Africana participará como membro pleno do G20. Com sua inclusão, aponta uma fonte brasileira, os países do Sul Global passaram a ter cerca de 80% dos boards do FMI e do Banco Mundial, um peso significativo para pressionar por mudanças na forma de liberação e aplicação de recursos e para decidir o comando das instituições, normalmente controladas por europeus e norte-americanos.

"Não faz sentido uma presidência brasileira que não coloque as questões dos países do Sul Global no centro", disse uma outra fonte brasileira que acompanha as negociações do G20.

O próprio presidente Luiz Inácio Lula da Silva já deixou claro que seu objetivo à frente do G20 é tratar dos assuntos que mais atrapalham o desenvolvimento desses países. Daí os temas escolhidos pela presidência brasileira como prioridades: reforma da governança global, combate à fome e à pobreza e combate às mudanças climáticas.

"Há quem questione o conceito de Sul Global, dizendo que somos diversos demais para caber nele. Mas existem muito mais interesses que nos unem do que diferenças que nos separam", defendeu Lula ao discursar em novembro do ano passado na cúpula virtual Vozes do Sul Global.

A preponderância de uma voz unificada do Sul Global se reflete, por exemplo, na discussão na trilha financeira do G20 sobre a dívida dos países africanos. Há uma pressão a favor de uma proposta brasileira de trocar a dívida por investimentos em combate à pobreza.

Uma outra fonte a par das negociações contou à Reuters que o ministro da Fazenda e coordenador da trilha financeira, Fernando Haddad, irá se encontrar com os autoridades de todos os países africanos presentes no G20, mostrando a ênfase que o Brasil está dando a essas questões. Como Haddad foi diagnosticado com Covid nesta segunda-feira, pode ser que os encontros ocorram de forma remota.

No entanto, do lado econômico há um cuidado em afirmar que o Brasil está empenhado em engajar Norte e Sul em um diálogo construtivo. "A interpretação de que há um desejo de enfatizar a liderança do Sul Global é mais da trilha de sherpas (política) do que da financeira", disse uma fonte brasileira do lado econômico das negociações.

De fato existe uma decisão política, dizem os diplomatas brasileiros, de tentar que o G20, onde existe uma igualdade maior de espaço para os dois lados, enfrente problemas que afetem a todos, especialmente em um momento complicado do cenário global.

"Existe uma cota desproporcional de poder para os países desenvolvidos nas organizações internacionais. O G20 é onde existe igualdade de condições, e para pôr assuntos na agenda é preciso uma coalizão de interesses", disse uma das fontes, essa ligada às negociações diplomáticas. "Mas é preciso ter prudência para não alienar parceiros tradicionais, que tem poder para agir, não criar muxoxos e gerar resistências."

Por isso, o trabalho dos negociadores brasileiros tem sido de equilíbrio em uma linha fina entre os dois lados para conseguir avançar nas agendas e não criar mais bloqueios do que avanços.

DESCONFORTO

A preponderância da voz sulista nas discussões já tem criado algum desconforto no clube dos países mais ricos. Sob condição de anonimato, um negociador de um dos países do G7 reconheceu que as negociações da trilha financeira serão difíceis para as economias avançadas.

"O comunicado será o primeiro em que as economias do Sul Global terão a liderança no seu desenho. E trata de transferir mais dinheiro dos países avançados para as economias emergentes", afirmou essa fonte.

"O G20 esta se tornando o principal campo de batalha entre as economias avançadas e as economias do 'Sul Global', que querem assumir a liderança do G20, particularmente com os Estados Unidos preocupados com as eleições americanas e as economias europeias fracas", acrescentou.

Na verdade, a presidência brasileira é a terceira seguida nas mãos de países emergentes, depois de Indonésia, em 2022, e Índia, em 2023, e será seguida pela África do Sul, no ano que vem. Diplomatas brasileiros reconhecem que essa sequência mudou o foco do bloco e abriu caminho para o Brasil avançar em questões objetivas da agenda dos emergentes e em desenvolvimento.

"Construímos em cima de uma base que foi montada, vendo o que teve de erros e acertos", disse uma das fontes brasileiras.

Josep Borrell, chefe da diplomacia da União Europeia, reconheceu que o Brasil conseguiu colocar os interesses e as preocupações do chamado Sul Global no centro das discussões, mas afirmou que os países avançados terão que lidar com isso.

"O Brasil conseguiu colocar a tônica nos interesses e preocupações do chamado Sul global. Não é mais um diálogo das grandes potências. Para nós, europeus, isso é bom. Nós temos que nos aproximar mais dos outros para evitar que o mundo seja divide em 'o resto contra o ocidente'", defendeu em entrevista na semana passada ao participar de encontro dos chanceleres do G20 no Rio de Janeiro.

© Reuters. Presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante entrevista coletiva no Palácio do Planalto
26/02/2024
REUTERS/Adriano Machado

"Ter a União Africana sentada a mesa é muito importante. Daqui a 20 anos uma em quatro pessoas no mundo será africana. Tirar os africanos dos fóruns mais importantes é uma ideia louca, porque nós (europeus) somos 5% da população mundial e estamos fortemente representados."

Criado para definir os países do hemisfério sul, o conceito de Sul Global surgiu para designar países normalmente em desenvolvimento ou emergentes em substituição ao termo "terceiro mundo". Apesar das diferenças culturais, de desenvolvimento e até tipos de governo, o conceito consegue amalgamar diferentes necessidades que, muitas vezes, estão em oposição direta àquelas das nações mais ricas.

 

(Reportagem de Lisandra Paraguassu e Marcela Ayres em Brasília e Leika Kihara, em Tóquio)

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