Por Lisandra Paraguassu
BRASÍLIA (Reuters) - O governo Lula planeja revogar as portarias da gestão Jair Bolsonaro que autorizam a ação da Polícia Rodoviária Federal (PRF) em operações fora do seu escopo de atuação original, que são os crimes em rodovias federais, informou à Reuters, Flávio Dino, coordenador do Grupo Técnico de Justiça e Segurança Pública da transição de governo.
"Qual é a sua função precípua (da PRF)? De segurança viária. Podemos agregar outras missões? Podemos, até devemos, desde que correlatas com a segurança viária estritamente e diretamente correlatas. Porque senão você cria uma força armada no Estado que não tem parâmetros legais de atuação, e isso é perigoso", disse Dino.
Senador eleito pelo PSB do Maranhão e hoje o nome mais forte para ocupar o Ministério de Justiça e Segurança Pública, Dino credita a problemas organizacionais criados com o desvirtuamento das ações da PRF casos como o de Genivaldo Santos, que foi morto por asfixia num porta-malas de uma viatura da PRF em Sergipe, em maio deste ano, após ser parado por estar sem capacete.
"É claro que também é um problema individual e, evidentemente, devem ser julgados e punidos. Mas tem o problema organizacional, de uma cultura organizacional inadequada com a lei e por isso você precisa corrigir", defende.
Duas portarias editadas pelo governo de Jair Bolsonaro alteraram o mandato da PRF para incluir a possibilidade de operações conjuntas com outras forças de segurança. A segunda portaria, de janeiro de 2021, retirou ainda a restrição prevista na primeira, de 2019, que delimitava as ações em "rodovias federais, estradas federais ou em áreas de interesse da União".
Na prática, a mudança permitiu que a PRF passasse a agir em qualquer área do território nacional, em muitos casos comandando operações, como aconteceu em casos de repressão ao tráfico de drogas e assaltos a banco, sobre as quais não deveria ter ingerência.
Dino ressalta ainda que a força passou a criar até mesmo um serviço de inteligência, o que estaria completamente fora de seu escopo, "porque ela não é a Polícia Judiciária e isso é algo fundamental para o cidadão, na medida em que você precisa ter legalidade na investigação".
"Se não, qualquer pessoa fica vulnerável a uma espécie de devassa. O que protege o cidadão, a cidadã, é saber que o Estado, quando vai investigá-lo vai agir de acordo com parâmetros, trilhos legais. Se você tem uma corporação armada que ultrapassa o seu mandamento legal, isso é um espaço aberto para toda sorte de abusos. Não é algo que diga respeito à PRF. E, sim, algo que visa proteger a sociedade", justificou Dino.
Hoje a PRF é vista pelos críticos como a mais bolsonaristas das forças de segurança no país --foi a que mais ganhou efetivo desde 2019. O diretor-geral da corporação, Silvinei Vasques, afastado do cargo por enfrentar uma série de processos, fez campanha para Jair Bolsonaro e é acusado de tentativas de interferir no processo eleitoral ao ordenar a realização de blitz no dia da eleição, especialmente no Nordeste, onde o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva teve mais votos.
Vasques é também acusado de leniência ao não agir contra bloqueios em estradas feitos por manifestantes que pregam um golpe militar que impeça Lula de voltar ao poder.
Dino, no entanto, ressalta que a mudança não é uma questão ideológica, mas de arcabouço legal.
"É claro que você tem que fazer um debate interno, mostrando que é uma questão de cumprimento da lei. Não é uma questão ideológica. A lei, neste caso, é um parâmetro fundamental para a administração pública de um modo geral, especialmente para as polícias", afirmou o ex-governador do Maranhão.
"Insatisfação todo mundo tem direito de ter, desde que fique adstrito àquilo que a lei permite. A pessoa pode achar ruim, mas ela não pode sabotar o trabalho. Ela não pode deixar de cumprir a sua missão. Então, com ponderação e com firmeza, tudo se ajeita", disse.
CRIMES CIBERNÉTICOS
O governo eleito deve, ainda, mexer em um outro vespeiro, o da criação de uma legislação para crimes de ódio na internet e uma ação para que as plataformas de mídias sociais ajam mais rapidamente para conter ações que acabam fomentando ações violentas, inclusive fora do ambiente virtual.
Segundo Dino, o GT tem um grupo específico para lidar com o tema, que irá apresentar uma proposta de legislação e atuação para o novo governo.
"Na minha ótica, fica evidente que aquela ideia que havia anteriormente da internet como ambiente entre aspas livre é uma ideia fracassada, porque ela é uma ideia que, na verdade, se presta à proliferação de toda sorte de crimes, inclusive esses crimes. Crime de ódio. Crimes contra o Estado Democrático de Direito", explicou Dino.
Segundo o senador eleito, o grupo de segurança pública montou uma relatoria só sobre crimes digitais e nela irá propor uma regulação e uma fiscalização específica que envolva as plataformas, "porque elas têm uma responsabilidade também".
"Se um grupo se reúne numa praça pública é mais fácil de detectar. Como hoje são comunidades virtuais, transitando inclusive pela deep web e etc., você precisa que as plataformas assumam suas responsabilidades", afirmou.
Dino defende que a atuação do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) nas últimas eleições mostrou o caminho para lidar com a proliferação de notícias falsas e crimes de ódio, inclusive com a obrigação das plataformas reagirem rapidamente.
"TSE mostrou que é possível tecnicamente e porque é importante, em vez de ser cinco dias, ser duas horas (o prazo para retirada de conteúdos). Por causa da dimensão da proliferação da mensagem. Em cinco dias a mensagem se espraiou em um nível que depois ninguém mais consegue colocar o demônio de volta na garrafa", afirmou ele.
"Você precisa caminhar, avançar para a ideia de que a regulação não é censura, e a regulação é fundamental nesse tipo de crime", disse.
Na reta final da eleição, o TSE editou uma resolução na qual reduziu para duas horas o prazo máximo para que as plataformas apagassem conteúdos indicados em decisões do tribunal, com multas para o descumprimento. A regra também permitiu as autoridades agirem de ofício, ou seja, sem serem provocadas por partidos políticos e candidatos quando se tratassem de conteúdo similar aos já julgados.
"É preciso colocar as plataformas dentro do tema. Elas não são meras ruas ou avenidas em que transitam veículos. Não. Têm uma responsabilidade por aquilo que transita por essas infovias", seguiu.
Algum tipo de regulação sobre as mídias sociais foi defendida pelo presidente eleito durante a campanha, mas o tema é considerado um debate complexo por especialistas, que apontam as dificuldades de impor limites com respeito à liberdade de expressão e anuência dos grandes mantenedores globais das plataformas.
A iniciativa era denunciada como censura pelo presidente Jair Bolsonaro, que tinha nas redes sociais sua principal forma de atuação na campanha e mesmo no governo --o atual presidente e aliados já tiveram várias postagens derrubadas por divulgarem informações falsas e distorcidas.
Segundo Dino, a intenção também é reforçar a atuação da Polícia Federal para a atuação em crimes na internet.
"Isso é uma questão fundamental para a segurança da sociedade e para a segurança da democracia", defendeu.