Por Lisandra Paraguassu
BRASÍLIA (Reuters) - O presidente Luiz Inácio Lula da Silva decidiu vetar o marco temporal para demarcação de terras indígenas aprovado pelo Congresso, informou nesta sexta-feira o ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha.
Segundo o ministro, a decisão de Lula foi tomada respeitando a Constituição e decisão recente do Supremo Tribunal Federal (STF).
Pouco depois do anúncio dos vetos, Lula comentou a decisão em publicação na rede social X, antigo Twitter:
"Vetei hoje vários artigos do Projeto de Lei 2903/2023 ... de acordo com a decisão do Supremo sobre o tema. Vamos dialogar e seguir trabalhando para que tenhamos, como temos hoje, segurança jurídica e também para termos respeito aos direitos dos povos originários", postou o presidente.
Tudo aquilo que foi considerado inconstitucional ou que não tenha coerência com a política do governo para os povos indígenas foi vetado, disse Padilha. Nas contas do governo, cerca de um terço do texto foi preservado, em artigos que regulamentam ou repetem legislações já existentes, como por exemplo, trechos relacionados à transparência de dados, e à garantia de que comunidades indígenas podem realizar atividades econômicas em suas terras, além da participação dos Estados e municípios em todo processo de demarcação.
“Tudo aquilo que significava um ataque aos direitos dos povos indígenas e iam contra a Constituição foram vetados”, disse Padilha. “Os artigos que se mantém abrem uma demonstração do governo federal que está disposto a dialogar com diferentes setores e aprimorar os regramentos.”
Também presente no anúncio dos vetos, a ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, afirmou que os vetos asseguraram aquilo que era "essencial" para os direitos indígenas. Disse ainda que os trechos sancionados não alteram "em nada" as regras já vigentes.
A ministra relatou que inicialmente a pasta recomendava o veto total ao projeto, mas mudou seu posicionamento após análise de pontos que já estão garantidos na Constituição, preservando partes do texto.
Aprovado pelo Congresso, o marco temporal visava fixar o dia da promulgação da Constituição de 1988 como data de corte para a demarcação de terras indígenas. O texto também fragilizava as leis de proteção de tribos isoladas e a áreas já demarcadas.
O STF derrubou a tese do marco temporal, mas ainda assim o Senado aprovou o projeto de lei retomando a linha de corte apenas uma semana após a decisão do Supremo.
Do artigo 4º do texto, que trata especificamente do marco temporal, sobraram apenas três parágrafos que tratam da publicidade e transparência do processo de demarcação, e o acesso amplo às informações.
Foram vetados ainda outros artigos considerados extremamente problemáticos pelo governo e pelas lideranças indígenas. Entre eles, o que impedia a ampliação das atuais terras indígenas e o que forçava a adequação de processos em andamento a esta lei, o que significaria suspender todos os que não obedecessem a previsão dos indígenas já estarem ocupando as terras em 1988, quando a Constituição foi promulgada.
Um dos vetos atingiu a parte da lei que permitiria a retomada de terras indígenas se fossem alterados os traços culturais essenciais da comunidade ou fosse considerado que a terra não fosse mais necessária para a comunidade.
Foi mantido o artigo que afirma que o usufruto das terras pelos indígenas não se sobrepõe à defesa e soberania nacional, mas foi vetado o parágrafo que autorizava a instalação de bases militares, abertura de estradas ou outras obras de energia nos territórios sem consulta às populações.
Outro artigo, que liberava obras de infraestrutura pelo poder público sem consulta às comunidades também foi vetado, assim como o que autorizava a atuação da Polícia Federal e das Forças Armadas da mesma forma.
O governo vetou ainda o artigo que criava condições para contatos com indígenas isolados, um dos pontos considerados mais críticos pelas lideranças indígenas e por organizações não governamentais. Apesar de impor limitações, o texto permitia o contato em casos de auxílio médico e “ação estatal de utilidade pública”. As duas condições, vagas, abriam espaço para o contato, hoje proibido.
ATIVIDADES ECONÔMICAS E INDENIZAÇÃO
Apesar de manter a possibilidade de exercício de atividades econômicas nas terras indígenas, os vetos retiram as possibilidades abertas pela lei de exploração e ocupação da terra por terceiros.
De acordo com esclarecimentos do governo, restam as possibilidades já existentes em lei, de exploração pelos próprios indígenas de alternativas econômicas, mas mantendo a gestão da terra e o usufruto integral em suas mãos.
Outro veto foi o do artigo 16, que prevê a indenização a proprietários que tenham suas terras com registro desapropriadas para demarcação. De acordo com o advogado-geral da União, Jorge Messias, o artigo foi considerado inconstitucional e entra em atrito com a decisão do STF na forma. No julgamento do marco temporal, foi decidido a previsão de uma indenização, mas avaliação jurídica do governo é que a forma entra em choque com a decisão.
Esse é um dos pontos mais caros a entidades ligadas a produtores, caso da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA). Um outro projeto que deve ser apresentado ainda por parlamentares pretende usar a indenização para dificultar as demarcações, prevendo valores excessivamente altos.
Apesar dos vetos, ressaltaram Padilha e Guajajara, o governo segue aberto ao diálogo com o Congresso, que ainda tem a opção de derrubar os vetos do presidente. Internamente, fontes palacianas admitem que a opção pelo veto parcial, mesmo que pouco tenha sobrado do projeto original, foi para não comprar uma briga direta com o Congresso.
No entanto, em nota, a FPA já avisou que pretende derrubar todos os vetos presidenciais.
“Diante das decisões recentes responsáveis por estimular conflitos entre a população rural brasileira – indígenas ou não, em desrespeito à Câmara dos Deputados e ao Senado Federal, a FPA não assistirá de braços cruzados a ineficiência do Estado Brasileiro em políticas públicas e normas que garantam a segurança jurídica e a paz no campo. Buscaremos a regulamentação de todas as questões que afetam esse direito no local adequado, no Congresso Nacional”, diz a nota.
Em teoria, a frente tem votos suficientes para derrubar de fato os vetos. Se isso acontecer, uma nova judicialização do tema é encarada como inevitável entre especialistas e parlamentares.