Por Fernando Kallas e Charlie Devereux
MADRI (Reuters) - A indignação com o beijo dado pelo principal dirigente do futebol espanhol na boca de uma jogadora, diante de milhões de pessoas que assistiam à Copa do Mundo, transformou-se em um momento "Me Too" que se desenrola há anos em um país cada vez mais intolerante a abusos.
O beijo do presidente da Federação Espanhola de Futebol (RFEF), Luis Rubiales, em Jenni Hermoso não só abalou o triunfo da Copa do Mundo, mas também desencadeou uma série de alegações de outras mulheres no esporte sobre o comportamento predatório dos homens.
"É a ponta do iceberg, publicamente, do que costumávamos ver em particular", disse à Reuters Verónica Boquete, capitã da Espanha na primeira Copa do Mundo da equipe, em 2015.
O escândalo veio depois de anos de crescente inquietação na Espanha sobre o abuso contra mulheres, especialmente depois do notório estupro coletivo de "Wolf Pack" contra uma adolescente em 2016, que levou o governo liderado pelos socialistas a reformar as leis de consentimento sexual.
No caso do futebol, os esforços da seleção feminina para combater o sexismo e alcançar a paridade com os homens datam de quase uma década. Isso inclui duas rebeliões no vestiário que encerraram a carreira internacional de várias jogadoras.
Verónica liderou um motim para pedir a demissão do técnico Ignacio Quereda depois de um péssimo desempenho na Copa do Mundo de 2015, a única que as equipes dele alcançaram em quase três décadas.
As jogadoras entrevistadas em um documentário da Movistar+ de 2021, "Romper el Silencio", descreveram uma cultura de bullying e condescendência sob o comando do técnico.
Quereda não respondeu a vários pedidos de comentários enviados para seu telefone, embora na época ele tenha dito que as reclamações das jogadoras "o magoavam... porque não é verdade".
A RFEF não respondeu a um pedido de comentário sobre as acusações contra Quereda.
No documentário, a ex-goleira Roser Serra disse que Quereda implicava com as mais jovens na frente da equipe, chamando-as de gordas ou dizendo que elas "precisavam de um homem". Imagens o mostram beliscando as bochechas das jogadoras ou puxando-as pela orelha.
"Ele nos tratava como garotinhas. Isso o fazia sentir-se poderoso dentro do grupo", disse Mar Prieto, que jogou pela Espanha entre 1985 e 2000, aos documentaristas.
Prieto acusou Quereda de tentar controlar todos os aspectos de suas vidas, verificando as sacolas quando iam às compras e insistindo para que dormissem com os quartos de hotel abertos.
"Não eram normais"
Nenhuma queixa oficial foi registrada porque as jogadoras estavam com medo, disse Verónica. "Muitas pessoas também normalizaram comportamentos, atitudes ou comentários que obviamente não eram normais."
A RFEF não respondeu a um pedido da Reuters para obter detalhes sobre as reclamações feitas sobre maus-tratos a jogadoras nos últimos dez anos e como elas foram tratadas, bem como detalhes de protocolos para treinamento de pessoal administrativo e a comunicação de tais reclamações.
Em seu site, há um documento detalhado de julho de 2021 identificando riscos de assédio e abuso para crianças e adolescentes que treinam em seus clubes, com diretrizes rígidas sobre como a equipe administrativa pode evitar a criação de ambientes hostis.
Mas a Reuters não conseguiu encontrar nenhum documento de orientação específico para assédio de gênero ou sexismo.
Quereda renunciou em 2015 em uma declaração emitida pela federação que não fazia referência ao motim das jogadoras.
Ele foi substituído pelo atual técnico Jorge Vilda.
Danae Boronat, apresentadora de esportes, disse à Reuters que alguns hábitos continuaram sob o comando de Vilda, incluindo manter as portas dos quartos de hotel abertas para que o comportamento pudesse ser monitorado.
Em setembro do ano passado, 15 integrantes de sua equipe entraram em greve exigindo mudanças nas condições de trabalho. A maioria das jogadoras envolvidas foi excluída do time, mesmo com algumas exigências sendo atendidas.
Vilda, que enfrenta a possibilidade de ser demitido nos próximos dias como parte das consequências do beijo de Rubiales, não respondeu a um pedido de comentário da Reuters enviado à RFEF.
Como o movimento #MeToo expôs os abusos cometidos por homens poderosos em todo o mundo nos últimos anos, as jornalistas esportivas espanholas também alegaram comportamento sexista.
A repórter Berta Collado ficou sem palavras quando o presidente do Atlético de Madri, Enrique Cerezo, respondeu a uma pergunta diante das câmeras referindo-se aos seus seios. Nesta semana, ela elogiou a equipe feminina por "chamar as coisas como elas são".
Carlota Planas, fundadora da agência de futebol feminino Unik Sports Management, que representa várias das vencedoras da Copa do Mundo, disse que o sexismo existe em todos os níveis do esporte, desde a base até a seleção nacional.
"Não pode ser que, por praticar um esporte, você se exponha a essas coisas", afirmou Planas.
Os líderes regionais da RFEF prometeram mudanças estruturais, mas Boronat disse que não esperava uma mudança cultural imediata devido ao domínio masculino na federação.
Mas esses homens estarão agora sob maior escrutínio, acrescentou ela.
"O que aconteceu é muito bom porque trouxe à tona os tipos de pessoas que estão lá, sua maneira de se comportar e como se protegem", disse Boronat. "Estamos mais próximos, mas de um dia para o outro é muito difícil mudar isso."
(Reportagem adicional de Emma Pinedo e Aislinn Laing)