Por Ricardo Brito
BRASÍLIA (Reuters) - No momento em que a operação Lava Jato avança sobre os políticos a partir das delações da Odebrecht, o presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), José Robalinho Cavalcanti, afirmou que a última versão do projeto de abuso de autoridade abre caminho para que pessoas poderosas possam se vingar de servidores públicos, como integrantes do Ministério Público, magistrados e policiais.
Segundo o procurador, o parecer do senador Roberto Requião (PMDB-PR) -que deverá ser lido nesta quarta-feira em sessão da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado- inova ao permitir que qualquer cidadão, e não apenas o Ministério Público, como prevê a atual legislação, possa mover ações por abuso de autoridade.
"Quem é que vai usar este artigo? O pobre que foi exposto sem camisa quando foi preso? Esse pobre vai ter condições de processar? Não, vai servir para as pessoas que têm poder político e econômico, vão contratar advogados para processar o MP, a polícia e o juiz", afirmou Robalinho em entrevista à Reuters.
"Será uma vingança privada e localizada", acrescentou.
Para o presidente da ANPR, essa iniciativa é um "retrocesso enorme" e, a seu juízo, é "claramente inconstitucional", porque caberia somente ao Ministério Público mover ações sobre fatos referentes a abuso de autoridade.
Ainda assim, Robalinho disse não ver da parte do relator do projeto qualquer indicativo de que pretende retaliar a Lava Jato. O procurador destacou, contudo, que há outros parlamentares que possam usar a discussão dessa proposta com esse interesse.
O presidente do Senado, Eunício Oliveira (PMDB-CE), alvo da Lava Jato, quer colocar o projeto em votação no plenário da Casa no próximo mês.
PUNIÇÃO
A última versão do substitutivo de Requião ao projeto de abuso de autoridade contempla uma série de inovações legislativas que, se já estivessem em vigor, poderia punir responsáveis por conduzir as investigações da operação Lava Jato.
Um pente fino no parecer de 57 páginas de Requião, feito pela Reuters, aponta que o juiz federal Sérgio Moro correria o risco de sofrer uma condenação por ter determinado, em março do ano passado, a condução coercitiva do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Na ocasião, Moro disse que tomou tal decisão para evitar que houvesse tumulto.
Pelo texto do substitutivo do senador, porém, não se pode decretar qualquer tipo de condução coercitiva de testemunha ou investigado "sem prévia intimação de comparecimento em juízo", sob pena de o responsável pelo ato poder ser condenado a pena de um a quatro anos de detenção e ao pagamento de multa.
Outro ponto que poderia ser contestado, caso já estivesse em vigor, é o artigo 23 da proposta. Determina crime de abuso de autoridade o seguinte: "Inovar artificiosamente, no curso de diligência, de investigação ou de processo, o estado de lugar, de coisa ou de pessoa, com o fim de eximir-se de responsabilidade ou de responsabilizar criminalmente alguém ou agravar-lhe a responsabilidade."
Seria, por exemplo, a situação do ex-presidente da Transpetro Sérgio Machado, que, sob críticas de ex-aliados, firmou um acordo de delação premiada com o Ministério Público Federal e gravou conversas com senadores em que eles discutiam, entre outros assuntos, iniciativas para barrar o avanço das investigações da Lava Jato.
Também poderia ser punido, conforme o projeto, quem divulgar gravação sem relação com a prova que se pretenda produzir, expondo a intimidade ou a vida privada, ou ferindo a honra ou a imagem do investigado. Essa medida contraria também toda a praxe de atuação da Lava Jato, de divulgar, na íntegra, áudios e vídeos das falas dos alvos da operação.
Outro ponto que poderia ser contestado é o fato, previsto no artigo 38 do projeto, que seria crime de abuso quando responsável pelas investigações antecipasse, por meio de comunicação, inclusive rede social, "atribuição de culpa, antes de concluídas as apurações e formalizada a acusação".
Integrantes da força-tarefa da operação Lava Jato sempre têm dado entrevistas coletivas após a deflagração de fases em que dão um balanço das investigações e, vez por outra, implicam investigados.
O presidente da associação reconheceu que, desde sua apresentação, o projeto foi "melhorado" pelo relator. "Não há como não deixar de reconhecer isso", avaliou Robalinho, ao considerar, entretanto, que ainda há pontos como os analisados pela reportagem cuja redação ainda pode ser aperfeiçoada.
Requião já negou à Reuters que seu projeto tenha por objetivo retaliar a operação, a qual defende, e que o projeto visa a combater eventuais excessos de servidores públicos.
"Não há que se confundir. Vejo o corporativismo de algumas categorias do funcionalismo tão nocivo quanto a corrupção no Brasil", disse o senador na semana passada.
O presidente Michel Temer afirmou, logo após a divulgação das delações de ex-executivos da Odebrecht, que o momento não é oportuno para votar o projeto.