Por Steve Stecklow e Jeffrey Dastin
LONDRES (Reuters) - A Amazon.com (NASDAQ:AMZN) promoveu uma coleção de discursos e escritos do presidente chinês, Xi Jinping, em seu site na China há cerca de dois anos, quando Pequim emitiu uma ordem, segundo duas pessoas familiarizadas com o incidente. A empresa não deveria permitir quaisquer avaliações e comentários sobre os textos por parte de clientes na China.
Uma crítica negativa ao livro de Xi motivou o decreto, disse uma das fontes. "Acho que o problema era com qualquer avaliação com menos de cinco estrelas", disse a outra fonte, referindo-se à nota mais alta possível no sistema de cinco pontos da Amazon.
As avaliações e resenhas são uma parte crucial do negócio de da Amazon, uma forma importante de engajar os consumidores. Mas a Amazon obedeceu a ordem, disseram as duas fontes. Atualmente, no site chinês Amazon.cn, o livro publicado pelo governo não tem resenhas de clientes ou avaliações. E a seção de comentários está desabilitada.
A obediência da Amazon à ordem do governo chinês é parte de um esforço mais profundo de uma década da empresa para ganhar favores no país visando proteger e expandir seus negócios em um dos maiores mercados do mundo.
Um documento interno da Amazon de 2018 que descreve os negócios da empresa na China apresenta uma série de "questões centrais" que companhia enfrentou no país. Entre eles: “o controle ideológico e a propaganda são a chave para que o partido comunista alcance e mantenha seu sucesso”, diz o documento. "Não estamos julgando se isso é certo ou errado."
Esse documento informativo e entrevistas com mais de duas dezenas de pessoas que estiveram envolvidas na operação da Amazon na China revelam como a empresa sobreviveu e prosperou no país ajudando a promover a agenda política e econômica global do Partido Comunista, enquanto rechaçou às vezes algumas demandas do governo.
Um elemento central dessa estratégia, segundo o documento interno e as entrevistas da Reuters com as fontes, foi a parceria acertada pela Amazon com um braço do aparato de propaganda da China para criar um portal de vendas no site da empresa nos Estados Unidos (EUA), um projeto que ficou conhecido como China Books.
O empreendimento - que acabou oferecendo mais de 90 mil publicações para venda - não gerou receita significativa. Mas o documento mostra que foi visto pela Amazon como crucial para ganhar suporte no país asiático, à medida que a empresa expandia seus negócios.
O documento de 2018 descreve as apostas estratégicas do projeto China Books para Jay Carney, o chefe global das operações de lobby e políticas públicas da Amazon, antes de uma viagem que ele fez a Pequim. "O Kindle (aparelho da Amazon para leitura de livros digitais) está operando na China em uma área política cinzenta", afirmou o documento, observando que a Amazon estava tendo dificuldade em obter uma licença para vender livros eletrônicos no país.
"O elemento chave para salvaguardar" o problema de licença com o governo chinês "é o projeto China Books", segundo o documento.
O documento ainda diz: "O projeto de livros Amazon.com/China também ganhou amplo reconhecimento entre os reguladores chineses."
VIDA EM XANGAI
Os livros incluem muitos títulos apolíticos, como publicações didáticas em chinês, de receitas e histórias infantis para dormir. Mas eles também incluem títulos que amplificam o discurso oficial do Partido Comunista.
Um livro exalta a vida em Xinjiang, onde especialistas das Nações Unidas disseram que a China internou um milhão de uigures em uma rede de campos de concentração. O livro, “Incrível Xinjiang: Histórias de Paixão e Herança”, discute um show de comédia online situado na região. A obra cita um ator que interpreta um uigure "caipira do campo", dizendo que a etnia "não é um problema" ali. Isso ecoa a posição de Pequim, que nega maltratar grupos minoritários.
Alguns livros retratam a batalha da China contra a pandemia de Covid-19, que começou na cidade chinesa de Wuhan, em termos heróicos. Um deles é intitulado "Histórias de coragem e determinação: Wuhan no confinamento do Coronavírus". Outro começa com o comentário de Xi: "Nosso sucesso até agora demonstrou mais uma vez os pontos fortes da liderança do PCC (o Partido Comunista da China) e do socialismo chinês."
A companhia estatal da China que tem parceria com a Amazon, a China International Book Trading Corp, ou CIBTC, disse à Reuters que o empreendimento é uma "relação comercial entre duas empresas". A Administração Nacional de Publicações e Imprensa da China, ou NPPA, o braço de propaganda do governo com o qual a Amazon tem uma parceria, não comentou.
Em resposta a perguntas, a Amazon disse que "cumpre todas as leis e regulamentos aplicáveis, onde quer que operemos, e a China não é exceção". Acrescentou que como vende de livros, "acreditamos que fornecer acesso à palavra escrita e a diversas perspectivas é importante. Isso inclui livros que alguns podem considerar questionáveis".
A Amazon afirmou que tem "uma ampla seleção de livros" sobre a China, e o portal China Books "é um canal adicional para servir nossos leitores chineses nos EUA e em outros lugares". A CIBTC é "apenas um dos milhões de parceiros de vendas em todo o mundo que oferecem produtos em nossas lojas".
Os novos detalhes sobre a estratégia da Amazon na China demonstram os desafios que as empresas ocidentais enfrentam para acessar o mercado mais populoso do mundo - e para lidar com um regime autoritário que tem apertado o controle sobre a liberdade de expressão.
Os compromissos da empresa com Pequim contrastam com seus esforços para contornar os reguladores nas duas maiores democracias do mundo. Na Índia, a Reuters mostrou este ano como a Amazon contornou as regulamentações locais e, para promover suas próprias marcas, manipulou os resultados de pesquisa em seu site indiano. Nos EUA, a Reuters detalhou como a Amazon atuou contra projetos de lei de privacidade estaduais projetados para proteger os consumidores.
A Amazon disse que sempre cumpriu a lei na Índia e não favorece seus produtos de marca própria nos resultados de pesquisa. Em relação aos EUA, a empresa disse preferir a legislação federal de privacidade do país, que protege os consumidores e não vende seus dados.
Algumas empresas responderam às demandas de Pequim deixando o mercado. O Yahoo recentemente saiu da China e o LinkedIn, da Microsoft (NASDAQ:MSFT), anunciou que retiraria alguns de seus serviços. Ambos citaram o difícil ambiente de negócios no país e suas exigências regulatórias.
A Amazon, por outro lado, tornou-se uma força econômica poderosa na China nos últimos anos, proporcionando oportunidades lucrativas de exportação para milhares de empresas chinesas, ao mesmo tempo em que desenvolve sua própria unidade de serviços de computação em nuvem, a Amazon Web Services.
A AWS é hoje um dos maiores fornecedores globais de soluções de computação em nuvem para empresas chinesas, de acordo com um relatório deste ano da empresa de análise iResearch na China e com pessoas que trabalharam para a AWS.
Ainda assim, em 2018, a Amazon recebeu um "número crescente de pedidos de reguladores (chineses) para retirar do ar determinados conteúdos, a maioria politicamente sensível", segundo o preparado naquele ano para Carney. Anteriormente, o executivo atuou como diretor de comunicações de Joe Biden, hoje presidente dos EUA, quando ele era vice-presidente. Carney também já atuou como secretário de imprensa do ex-presidente norte-americano Barack Obama.
A Amazon não permitiu que Carney se pronunciasse para uma entrevista à Reuters.
De acordo com o documento, a Administração do Ciberespaço da China, ou CAC, pediu à Amazon em 2018 que retirasse do ar um "link para o novo filme de grande sucesso da China, Amazing China, devido às críticas especialmente severas de usuários". A CAC é responsável pela segurança online e regulamentação de conteúdo.
"Amazing China" exalta as realizações do país desde que Xi se tornou presidente em 2013. A CAC queria que o link fosse removido do IMDb, um site da Amazon com informações e críticas sobre filmes.
O escritório da Amazon na China respondeu ao CAC que "é difícil para a Amazon China atender a esses pedidos, e vamos transmitir a mensagem para a" sede da Amazon "e buscar suas opiniões sobre as possibilidades", segundo o documento.
O filme continua listado no IMDb nos EUA. Pouco depois do pedido, algumas críticas negativas desapareceram, mostram imagens de capturas de tela arquivadas no archive.org. Outras permanecem, e "Amazing China" atualmente tem uma avaliação geral de apenas 2,3, de uma pontuação máxima de 10. Algumas avaliações chamam a produção de "patética", "lixo" ou "propaganda do governo".
"Algumas resenhas enviadas para o título 'Amazing China' foram removidas, porque violavam nossas diretrizes de conteúdo de resenhas de usuários, sendo a maioria desconectada com o assunto", disse a Amazon à Reuters. "O IMDb não tem conhecimento de nenhum pedido de partes externas (incluindo o governo chinês) para fazer qualquer coisa sobre as análises deste título."
A CAC não respondeu a pedidos de comentário.
UM ACENO
A Amazon entrou na China em 2004 por meio de um acordo de 75 milhões de dólares para a aquisição da Joyo.com, uma varejista online de livros e mídia. A Amazon queria introduzir livros eletrônicos e seus populares dispositivos de leitura Kindle no mercado chinês.
Para tanto, a empresa trabalhou com a Administração Geral de Imprensa e Publicação, ou GAPP, um regulador que se ocupa da censura estatal em seu papel de supervisão de publicações na China. A NPPA, o braço de propaganda do governo chinês, agora lida com a maioria das responsabilidades do GAPP. A NPPA é supervisionada pelo Departamento de Publicidade do Partido Comunista, que antes era conhecido como Departamento de Propaganda.
De acordo com um ex-executivo da Amazon envolvido em negociações com a China, a empresa obteve algumas, mas não todas, as aprovações do governo de que precisava para vender Kindles e livros eletrônicos. Essa situação deu ao governo vantagem sobre empresa, disse o ex-executivo. A equipe de políticas públicas da Amazon surgiu com o projeto China Books como uma nova maneira "de conseguir o que queríamos no Kindle e outras coisas", afirmou a fonte. "Foi uma piscadela e um aceno de cabeça."
A Amazon logo começou a trabalhar com a GAPP para criar a China Books, de acordo com o documento. A empresa planejava apresentar o portal para as autoridades chinesas como a única loja da Amazon com o nome de um país, mostra o documento. A Amazon dedicou vários funcionários a essa tarefa, que envolveu a CIBTC, empresa de comércio de livros do governo, a qual o documento descreveu como "o órgão executor da GAPP".
Uma fotografia no site da CIBTC mostra funcionários chineses brindando ao lançamento do projeto em um hotel em Pequim em setembro de 2011.
Em outubro de 2012, a China Books recebeu o título de "um projeto-chave de exportação da cultura nacional" por um grupo de órgãos do governo chinês, incluindo a GAPP, bem como a entidade agora conhecida como Departamento de Publicidade do Partido Comunista da China. Dois meses depois, a Amazon lançou seu negócio de livros eletrônicos na China e logo começou a vender Kindles.
No final de 2017, a China havia se tornado o maior mercado global do Kindle, "respondendo por mais de 40% do volume mundial de vendas de dispositivos", de acordo com o documento informativo de 2018. Até então, a Amazon havia adicionado uma loja chinesa de livros eletrônicos ao seu site norte-americano e traduzido 19 livros.
E Carney, o principal executivo de políticas públicas, que então se reportava ao fundador da Amazon, Jeff Bezos, foi para a China em abril de 2018. Lá, ele disse a um membro suplente do comitê central do Partido Comunista que a Amazon faria "todos os esforços" para promover a China Books e torná-la "maior e mais forte", de acordo com um comunicado à imprensa da CIBTC.
O documento informativo preparado para Carney afirmava: "Tanto a China Books quanto a Kindle Chinese eBook Store são o principal compromisso da Amazon China para ajudar a China em seu projeto abrangente que visa promover a cultura chinesa para o mundo."
A página da Amazon China Books mostra com destaque o nome da CIBTC, mas não revela que é um projeto que a Amazon criou em parceria com uma agência governamental chinesa.
"Os detalhes sobre a empresa estão disponíveis online", disse a Amazon à Reuters, "e a CIBTC colocou seu nome e logotipo de forma proeminente na página. Nosso relacionamento com a CIBTC é inteiramente apropriado", diz a empresa.
Eventualmente, o projeto da China Books fracassou financeiramente, de acordo com uma pessoa que esteve envolvida nele. Poucos títulos do portal venderam bem, e a Amazon até mandou livros de volta porque seus depósitos não tinham espaço para eles.
No entanto, o projeto continua. A versão em chinês de "Xi Jinping: A Governança da China, Volume Três" - é listada em primeiro na página de mais vendidos da China Books. O livro recentemente estava na classificação 1.347.071 de vendas. Outro "best-seller", sobre Covid-19, ficou em 10.654.483. O título de Xinjiang, que a Reuters comprou, foi classificado em 13.441.455.
Mas as vendas não eram o objetivo, segundo a pessoa que se envolveu no projeto. "É uma oportunidade de alto nível", parte de uma "campanha de 'soft power' para basicamente divulgar os livros e torná-los visíveis".
Em seu comunicado à Reuters, a CIBTC, empresa de comércio de livros do governo, disse que não "classifica os livros vendidos pela Amazon". A companhia não deu mais detalhes.
AMEAÇA DE RETALIAÇÃO
A Amazon continuou sua expansão na China em 2013, anunciando o lançamento em Pequim da empresa de computação em nuvem AWS. Na época, nenhuma lei chinesa regulamentava os serviços, observou o documento informativo de 2018.
Em 2016, a China começou a tomar medidas que dificultaram a operação de empresas estrangeiras de computação em nuvem, como a AWS, no país.
O governo começou a exigir que os provedores de serviços tivessem uma nova licença que apenas empresas chinesas poderiam obter, de acordo com o documento. "Os reguladores se tornaram muito hostis" em relação à AWS, diz o texto de 2018.
O resultado foi que a Amazon deu um passo incomum para a empresa: entregou sua tecnologia de computação em nuvem a empresas locais para que pudesse continuar operando na China.
As empresas chinesas - não a Amazon - foram responsáveis por "monitorar e retirar conteúdo ilegal, coletar e relatar informações básicas de clientes ... e trabalhar com as autoridades da RPC (República Popular da China) em todas as consultas relacionadas à compliance que possam surgir", diz o documento.
Em sua declaração à Reuters, a Amazon disse que a AWS, como um provedor de computação em nuvem estrangeiro, tem que licenciar ou vender tecnologia para parceiros locais na China para ter uma presença no país
No entanto, essa estrutura não protegeu AWS da pressão chinesa.
Em fevereiro de 2018, o Ministério de Segurança Pública da China, ou MPS, convocou a AWS para uma reunião, afirma o documento. O MPS ameaçou "retaliar" contra a Amazon, a menos que a empresa removesse conteúdo e bloqueasse um site que hospedava nos EUA para Guo Wengui, um dissidente chinês. A AWS recusou o pedido, segundo o documento.
Mas a empresa pediu a Guo que tomasse uma atitude que expôs seu protocolo de internet, ou endereço IP, e a companhia forneceu os dados ao MPS, afirma o documento. Um endereço IP é um código único que identifica um computador que acessa a internet.
O ministério "reconheceu o nosso esforço para encontrar uma solução, embora não...ao seu nível satisfatório", afirma o documento.
O texto aconselhou Carney a abordar o pedido do governo sobre Guo ao se encontrar com um alto funcionário do Ministério do Comércio em Pequim, e enfatizar que a China não deve fazer solicitações que envolvam dados armazenados no exterior.
Questionada sobre o incidente de Guo, a Amazon confirmou que recebeu o pedido do governo chinês, mas disse que "não forneceu nenhuma informação não pública ou qualquer outra informação do cliente".
O Ministério do Comércio disse que Guo não foi assunto na reunião com Carney. A Amazon não disse se o tópico foi discutido.
Um funcionário do MPS disse que o ministério não responde a pedidos de comentários. Um advogado de Guo disse que ele não comentaria o assunto.
Os negócios da AWS na China continuam crescendo. Apesar de ser impedida de vender serviços para o governo e algumas empresas estatais, a AWS conseguiu clientes importantes na China, dizem pessoas a par do assunto.
Entre elas estão duas empresas chinesas, o ByteDance, desenvolvedora do Tiktok, e a empresa de videovigilância Hikvision, bem como as multinacionais Nike (NYSE:NKE), Samsung (KS:005930) e Philips, de acordo com o documento e um blog de 2019 no site da AWS. A Philips não quis comentar; as outras quatro empresas não responderam aos pedidos de comentários.
Em junho, a AWS anunciou que estava se expandindo ainda mais no país, "para atender às demandas de nossa crescente base de clientes na China".
(Reportagem adicional da redação da Reuters em Xangai)