SÃO PAULO (Reuters) - O maior problema dos apocalipses, na literatura e cinema, é que eles nunca são apocalípticos o bastante. Sempre sobra algum resíduo de mundo, de vida humana, para contar a história. É sempre num cenário devastado que essas narrativas acontecem, e suas forças motoras são a necessidade de se proteger para sobreviver.
Talvez nunca tenha havido um momento tão propício para esse tipo de trama como o final do século 20, e esses primeiros anos do 21, dado o estado das coisas na esfera global. Em seu filme “Ao Cair da Noite”, o roteirista e diretor Trey Edward Shults mostra estar bastante ciente disso.
De início, parece que a sua história já foi contada um punhado de vezes. Mas Shults é inteligente o suficiente para armar um clima “confortavelmente” óbvio, para, aos poucos, puxar o tapete do seus personagens – e do público, por tabela. Uma epidemia, sobre a qual pouco se sabe, está dizimando a humanidade. Ela é transmitida pelo contato direto com os contaminados. Os poucos sobreviventes saudáveis se protegem como podem, estocando comida e animais.
Paul (Joel Edgerton, como sempre, impressionante) e sua família, composta pela mulher, Sarah (Carmen Ejogo), e o filho de 17 anos, Travis (Kelvin Harrison Jr.), moram numa cabana no meio de uma floresta, onde criaram seu refúgio, e nele conseguem se proteger.
O filme começa com a morte do pai de Sarah (David Pendleton) – algo que repercute ao longo da trama. Os problemas nesse pequeno paraíso – cercado de doença e destruição – começam com a chegada de um homem Will (Christopher Abbott), que pede abrigo à sua família, após provar que não está contaminado.
Essa é uma família nuclear, tal qual a de Paul e Sarah – o que talvez seja um dos motivos que os sensibiliza a dar abrigo a Will, Kim (Riley Keough) e o filho pequeno deles, Andrew (Griffin Robert Faulkner).
As boas intenções, no entanto, não salvam nenhuma dessas pessoas dos horrores dentro e fora da cabana na floresta. Começando com a tácita rivalidade masculina entre os dois patriarcas pela liderança do grupo – Paul tem vantagem porque é o dono da casa; Will, porém, é mais jovem – até a tensão sexual entre Kim, cujo comportamento e figurino soam algo meio hippie, e Travis.
Paranoia e medo dão o tom ao ambiente e reverberam na narrativa. Shults, em seu segundo longa, é seguro o suficiente para não se deixar levar pelos mais tentadores clichês. Não há zumbis vagando em busca de humanos saudáveis que, mesmo correndo, acabam capturados. Não há sangue e vísceras, para puro efeito de terror. O que há é a construção de uma atmosfera inquietante, pesada, numa verdadeira bolha prestes a explodir – salientada pelo fato de haver um punhado de armas dentro da cabana, por motivos de defesa contra os ataques exteriores.
Em seu primeiro longa, “Krisha”, de 2105, Shults criou um drama familiar que cresce como um filme de terror, durante um jantar de Ação de Graças, no qual tudo dá errado. Em “Ao Cair da Noite”, o diretor faz o contrário. Estabelece os motivos de filme de terror para explorar dramas familiares e questões morais.
Há, obviamente, grandes diferenças entre os dois longas – especialmente de tom – mas também existe uma preocupação formal (embora distinta) nas duas obras. Em sua estreia, o cineasta era verborrágico, explosivo: pessoas falando ao mesmo tempo, diversas coisas acontecendo no mesmo quadro, mais de uma dezena de personagens em cena. Aqui, por sua vez, pouco se fala e nada é gratuito. Cada cena conta, cada diálogo sublinha o mal-estar do momento.
Qual o peso da moral diante da tragédia? Shults, como bom investigador da natureza humana, sabe que as relações interpessoais existem dentro de um contexto sócio-histórico e, impregnadas pela força do presente (seja ele qual for), pautarão as decisões morais e a política dos afetos. Nesse sentido, “Ao Cair da Noite” é um estudo brilhante sobre as decisões necessárias e inevitáveis que gente comum precisa tomar diante de situações extraordinárias.
Dessa forma, a cena final é uma das mais fortes que se verá no cinema este ano – especialmente porque ela não diz se está situada antes ou depois de que uma certa resolução foi tomada.
(Por Alysson Oliveira, do Cineweb)
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