SÃO PAULO (Reuters) - Marguerite Dumont acredita que canta muito bem. Em sua casa, reúne dezenas de amigos, a nata da sociedade francesa da região. É década de 1920, e as sombras da Primeira Guerra Mundial ainda pairam. Seus recitais são sempre por uma causa nobre: os órfãos da guerra. Não há quem negue presença ou doações. Mas, quando ela abre a boca para cantar, alguns se escondem numa sala fechada para evitar ouvir a voz desafinada. Seu canto é constrangedor e irritante. Mas ela tem muito dinheiro – por isso, pode.
Inspirada numa figura real –-a norte-americana Florence Foster Jenkins, cuja cinebiografia, protagonizada por Meryl Streep, estreia em breve no Brasil – “Marguerite” é um filme sobre o poder da elite e a cegueira coletiva que levariam à ascensão de regimes fascistas e à Segunda Guerra. O primeiro tema está bem claro no filme; o outro, subjacente. Dirigido por Xavier Giannoli –-a partir de um roteiro dele e de Marcia Romano –-o longa é protagonizado por Catherine Frot (“Os Sabores do Palácio”), cuja interpretação brilhante lhe rendeu o César, principal prêmio francês, de melhor atriz.
Somos apresentados à personagem pelos olhos de um jornalista, Lucien Beaumont (Sylvain Dieuaide), que, com o amigo Kyrill Von Priest (Aubert Fenoy), penetra num recital de Marguerite. Ambos se espantam com a falta de talento da mulher, mas também com a completa hipocrisia da alta sociedade que a aplaude, com a desculpa de que é “por uma boa causa”. Ninguém tem coragem de contar à mulher sua falta de talento, com medo de magoá-la. O contraponto é uma jovem cantora talentosa (Christa Théret), que também se apresenta nesse recital e cuja carreira está em ascensão.
Marguerite quer mais, cada vez mais. Fechada em sua bolha, protegida pelo marido (André Marcon), dependente de seu dinheiro e envergonhado, e seu fiel mordomo (Denis Mpunga), sonha em cantar em um teatro lotado. Conseguirá, porque sua fortuna compra tudo. Lucien, com um perfil no jornal intitulado “A Voz dos Órfãos”, poderia escancarar a verdade, mas prefere hipocritamente elogiá-la. Marguerite é incapaz de perceber que está sendo debochada, e ainda se encanta com a colagem modernista que ganha de Kyrill, na qual seu rosto é a figura central.
Essa Marguerite Dumont, cujo nome remete a uma personagem de “Uma Noite na Ópera”, com os irmãos Marx, é uma figura peculiar que transita entre o ridículo e o trágico, pendendo mais para o último. Todos têm intenções escusas com a protagonista e querem algo dela, sendo que o mordomo se revela o mais cruel de todos.
A certa altura, Marguerite contrata um professor de canto, um tenor decadente, Atos Pezzini (Michel Fau), pois ela quer preparar-se para sua grande apresentação. Sua versão para “A Rainha da Noite”, ária de “A Flauta Mágica”, de Mozart, é ensurdecedora, mas ele promete mudar isso. Como todos, porém, ele mente para ela. Sua alienação é sua benção.
É nesse sonho que vive Marguerite –-uma espécie de Norma Desmond (personagem de “Crepúsculo dos Deuses”) sem talento. Mas quem tem coragem de dizer isso a ela? Quem tem coragem de contrariar uma milionária extravagante que pode pagar por todos seus caprichos? Quem teria a bravura de discordar dela? Ninguém.
É nisso que reside o mais trágico de “Marguerite”, não apenas a percepção do filme diante da Europa do entreguerras, mas das dinâmicas sociais de classe. Ou seja, um rico jamais deveria ser contrariado, ainda que isso levasse fatalmente à tragédia.
(Por Alysson Oliveira, do Cineweb)
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