SÃO PAULO (Reuters) - Rodado na Rússia, “Vermelho Russo” é uma coprodução russo-brasileira que leva a marca da fusão entre documentário e ficção --e de tal forma natural que não se enxerga nitidamente as fronteiras entre um e outra.
Essa mistura singular resulta numa fluência da narrativa que já se tornou a marca registrada do diretor Charly Braun, aqui em seu segundo longa, novamente premiado no Festival do Rio, desta vez com o troféu de melhor roteiro. Em seu filme de estreia, “Além da Viagem” (2010), Braun venceu o prêmio de melhor direção.
Ambos os filmes do diretor são relatos de viagem. Mas, se no primeiro longa, tratava-se de uma jornada masculina, aqui ela é eminentemente feminina, dividida entre as duas protagonistas, as atrizes Martha Nowill e Maria Manoella. As duas viajam a Moscou para fazer um curso de interpretação no método Stanislavski. É dessa viagem, de seus detalhes, encontros e surpresas que se nutre a história.
Martha e Maria são atrizes e amigas --como na vida real. No curso, envolvem-se na representação de “Tio Vânia”, do dramaturgo Anton Tchecov. Várias vezes reinterpretada ao longo do filme, uma determinada cena entre elas evoca não só a repetição diária exigida pelo teatro, como reafirma a originalidade de cada encenação --nunca uma igual à outra – e as nuances que se pode extrair de uma mesma situação, sugeridas pelo atento professor russo, Vladimir Poglazov.
Habilmente, tira-se partido de diversos cenários de Moscou, como nos passeios pela Praça Vermelha e pelo metrô, e das interações com os locais, especialmente com funcionários e moradores do alojamento em que se hospedam as atrizes --que é também uma espécie de retiro para velhos artistas aposentados, cuidados por enfermeiras e atendentes.
Por essa disposição de abraçar o instante, a câmera incorpora detalhes como os retratos de artistas que já viveram no alojamento, um gato que aparece no restaurante, o sorriso de um passageiro do metrô, a neve que cai vista pela janela, formando um mosaico que fortalece a ideia da vivência de um momento de passagem e transição.
Ao redor disso, desenvolve-se também as tramas em torno do relacionamento das duas amigas, num determinado momento abalado pelo envolvimento com outro brasileiro de passagem pela Rússia, Michel Melamed.
Muito à vontade em sua vivência diante da tela, as duas atrizes emprestam seus rostos e sua pele ao filme de uma maneira que compõe um modo de existir feminino, entre a afirmação, o afeto, a rivalidade, a conciliação, o humor.
Por essa naturalidade e fluência é que o filme manifesta o seu espírito e traduz melhor sua origem --o diário de viagem da própria Martha Nowill, a partir de uma viagem à Rússia, que foi o ponto de partida do roteiro, assinado por ela e pelo diretor.
De todo modo, não deixa de ser curioso pensar que este roteiro certamente não passou de um estímulo inicial, que incorporou outras formas ao longo da filmagem, através da assimilação dos próprios acidentes de percurso e --quem sabe?-- até conflitos reais entre as protagonistas.
Tudo pode ser verdade ou não, mas como o que quer que se passe diante da tela é narrativa, se é ou não ficção não tem a menor importância. Porque tudo soa autêntico e orgânico, ainda que não se tenha a última certeza sobre sua verdadeira natureza.
Não falta, aqui e ali, um igualmente instigante exercício de metalinguagem, a partir da participação de um ator --Esteban Feune de Colombi, protagonista de “Além da Viagem”--, que filma obsessivamente tudo, incorporando o papel do cineasta que faz um filme, criando uma outra janela de interação entre as duas artes, o teatro e o cinema.
(Por Neusa Barbosa, do Cineweb)
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