SÃO PAULO (Reuters) - Michel Racine (Fabrice Luchini) é um juiz linha-dura, apelidado de “Dois dígitos”, porque suas sentenças nunca são menores do que 10 anos. Ele começaria só mais um caso em sua carreira – o de um pai acusado de matar a filha – se, entre os jurados, não estivesse uma mulher por quem foi apaixonado. Ela é a médica Ditte (Sidse Babett Knudsen).
Escrito e dirigido por Christian Vincent (“Os Sabores do Palácio”), “A Corte” é um delicado estudo sobre medos privados em lugares públicos em torno de um juiz que sofre por amor quando o júri se retira para deliberar.
Racine está em meio a uma crise – separou-se da mulher (numa participação luminosa da atriz rohmeriana Marie Rivière), mora num hotel e está com uma gripe pesadíssima, o que o obriga a usar uma série de remédios. Tudo muda quando Ditte é sorteada na corte como suplente do júri.
A grande sacada de Vincent é realizar um filme que transita entre um drama de tribunal convencional e o retrato de um romance reprimido – é praticamente uma mistura de “12 homens e uma sentença” e o clássico romântico inglês “Desencanto” filtrada pela sensibilidade francesa. O melhor é que a combinação funciona por causa de um elemento que une os dois gêneros dentro de “A Corte”: o interesse humano.
O drama de tribunal garantiria um filme em si. Jovem (Victor Pontecorvo) é acusado de chutar sua filha bebê causando sua morte, num momento em que a mãe (Candy Ming) não estava em casa. O rapaz se recusa a cooperar e, aconselhado por seus advogados, apenas repete que é inocente durante o interrogatório. É uma trama extremamente pesada que começa com um ar quase banal. E o que se torna ainda mais agravante é o fato de o filme ser narrado sob a ótica do juiz.
Nos intervalos, porém, Racine se aproxima de Ditte – “não é proibido, mas também não é aconselhável”, diz ele quando ela pergunta se não há problemas. Existe uma chama ainda de um romance truncado quando ela cuidou dele no hospital após um acidente. Ela é mais prudente do que ele, que parece não cruzar a linha do decoro apenas porque ela se esquiva.
À medida que o filme avança, a trama do julgamento ganha camadas. Novos depoimentos e evidências podem indicar reviravoltas. Já o romance, no entanto, segue contido. O quase desinteresse de Racine na história do pai que pode ter matado sua filha e seu fascínio pela jurada materializam a dissonância causada pelo homem privado se sobrepondo ao público.
Vincent encontra um equilíbrio entre as duas tramas a ponto de ambas despertarem interesse. Muito disso deve-se ao trabalho dos atores – desde a dupla central até os companheiros de Ditte no júri, que, por sua vez, criam um painel variado de tipos humanos numa França contemporânea e multicultural. Luchini foi premiado no Festival de Veneza (assim como o roteiro do filme), e a dinamarquesa Sidse, com o César de atriz coadjuvante. É graças às interpretações inspiradas deles que o filme não cai num limbo de clichês.
Por fim, o título original “L'hermine”, que se traduz como “O Arminho” refere-se à gola de pele que o juiz usa – um símbolo um tanto antiquado, mas que, como ele mesmo admite, confere-lhe uma sensação de poder. Já o título nacional, “A Corte”, retrata uma bem-sacada duplicidade presente no filme: a corte onde o julgamento acontece, mas também pode se referir ao jogo de sedução entre Racine e Ditte.
(Por Alysson Oliveira, do Cineweb)
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