SÃO PAULO (Reuters) - Uma das mais extraordinárias poetas da língua inglesa, Emily Dickinson (1830-1886) teve uma vida quase anônima, vivendo e morrendo em Amherst, Massachussets, e não publicando, em vida, mais do que 12 de seus 1.775 poemas até hoje conhecidos.
É procurando captar a atmosfera de seu tempo e o espírito desta mulher original e singular, que talvez nunca suspeitou da fama póstuma de que desfrutaria, que o cineasta inglês Terence Davis realiza “Além das Palavras”, contando com a entrega e a cumplicidade da atriz Cynthia Nixon para encarnar a autora na maior parte do filme.
Diretor de filmes como “Vozes Distantes” (88) e “Amor Profundo” (2011), Davies é um diretor na medida certa para calibrar emoções delicadas, ainda que intensas. Por isso, torna-se ideal para conduzir esta investigação em torno do contexto e da vida de Emily – uma mulher culta, conectada com seu tempo, ciente da discriminação voltada contra uma maior expressão e independência feminina. Rebelde, sim, mas de uma rebeldia contida, seja pelo ambiente calvinista e puritano de Amherst, seja por seu próprio temperamento recatado e uma noção muito particular de integridade.
Contando com um roteiro assinado também por Davies, a história começa com a jovem Emily (Emma Bell) rebelando-se na escola contra imposições religiosas – no que teve o apoio do pai, Edward (Keith Carradine), um advogado culto e politizado que não nutria maiores simpatias pelos excessos do rigor cristão.
De volta a casa, Emily reúne-se aos irmãos, Austin (Duncan Duff) e Vinnie (Jennifer Ehle), compondo um trio afetiva e intelectualmente muito ligado. Os diálogos sofisticados entre estes três e o pai são muito reveladores do ambiente refinado em que se movia Emily, também uma leitora voraz de poetas de sua época, como Robert Browning e sua mulher, Elizabeth Barrett Browning.
O peso de uma era puritana observa-se no entanto no comportamento esperado das mulheres da época. Tanto que Emily pede autorização ao pai para escrever seus poemas à noite. Entre os dois, aliás, havia um relacionamento afetuoso mas não faltam situações que demonstram que há limites para a emancipação de Emily.
O grande acerto do filme é contemplar as contradições da própria poeta, uma mulher solitária, sem maiores relacionamentos fora deste círculo familiar, que nunca se casou e parece ter nutrido apenas paixões platônicas e impossíveis – como por um pastor casado, Charles Wadsworth (Eric Loren), seu grande amigo.
Ao lado desta vivência social restrita, em que desponta apenas uma amiga peculiarmente extrovertida, Vrying Buffam (Catherine Bailey), estrutura-se toda uma densa vida interior, traduzida nos belos poemas de Emily – e o filme apresenta vários deles, na leitura expressiva de Cynthia Nixon.
Sem pretender igualmente esgotar todos os mistérios da personagem, bem como de suas escolhas, “Além das Palavras” contribui para traçar um retrato bastante realista e emotivo de quem ela pode ter sido, compreendendo as circunstâncias de sua época e as tragédias de sua vida – como a morte de sua mãe (Joanna Bacon) e sua própria saúde precária, com um doloroso problema renal que tornou seus últimos anos particularmente difíceis.
A fotografia do alemão Florian Hoffmeister – que foi parceiro do diretor em “Amor Profundo” – é uma ferramenta imprescindível à criação dos climas suaves e contrastados que se alternam à medida que a narrativa avança, contribuindo para um aspecto natural e vivo de cada momento, sem o ranço de alguns filmes de época. Este aspecto técnico é particularmente importante num filme que se desenrola muito em ambientes internos, quase claustrofóbico, traduzindo a implosão emocional de Emily – cuja imaginação e sensibilidade, no entanto, a levaram a ultrapassar os limites de seu tempo de uma forma extraordinária.
(Por Neusa Barbosa, do Cineweb)
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