SÃO PAULO (Reuters) - Uma sensação de estranheza pode percorrer o espectador brasileiro de “Joaquim”, o novo filme do cineasta pernambucano Marcelo Gomes – que representou o Brasil na competição oficial do mais recente Festival de Berlim.
Como não se pretende uma cinebiografia do famoso líder da Inconfidência, Joaquim José da Silva Xavier (1746-1792), o filme dá-se ao luxo de ignorar preâmbulos informativos ou mesmo vincular estritamente o personagem aos fatos mais conhecidos de sua vida – embora fique clara esta ligação a partir da narração em off com que o fantasma do protagonista abre a história.
“Joaquim” se coloca declaradamente como uma crônica de época, procurando no Brasil de traços incertos do século 18 as pistas para um desenvolvimento desequilibrado e as profundas desigualdades sociais que, desde então, assolam a nação.
Roteirizado também por Gomes, o filme explora as lacunas e lendas em torno da vida do protagonista – sobre quem, afinal, pouco se sabe com exatidão fora dos autos da Inconfidência. Permite-se, assim, a liberdade de imaginar quem ele pode ter sido, a partir da visão de um Brasil povoado majoritariamente por mestiços, escravos e índios, explorado por um ávido regime colonialista, mas já dando sinais de que uma sociedade ensaiava existir por aqui.
Assim, Joaquim (Julio Machado) é apresentado como o devotado alferes a serviço da Coroa portuguesa, encarregado de caçar contrabandistas de ouro pelos caminhos inóspitos do sertão mineiro. Sonha com uma promoção a tenente, que lhe permitiria realizar o sonho de comprar a escrava Preta (Isabél Zuaa), por quem é apaixonado.
Nada sugere que este homem simples, mas com alguma instrução e prática odontológica – esta, revelando mais uma face da precariedade na vida da colônia – vá se transformar num rebelde. Por seus sonhos, ele parece mais um integrante de uma incipiente classe média que ainda nem propriamente existe. No país do século 18, a maioria da população é desprovida de direitos e até de planos de emancipação. Só a elite administrativa portuguesa e uma pequena quantidade de proprietários locais pode aspirar a algum conforto e satisfação.
Empenhado num naturalismo profundo, o filme não poupa detalhes desta vida nos rudes trópicos, em que a rotina do trabalho do próprio Joaquim é levada no lombo de burros, no meio da mata fechada, do calor, dos mosquitos e da falta de condições de higiene. Tudo isso é traduzido com mais contundência no segmento em que o alferes é encarregado pelos superiores de buscar ouro no chamado Sertão Proibido, local dos mais inóspitos e que foi filmado nos arredores de Diamantina (MG).
“Joaquim” empenha-se no esforço de despertar os instintos e a imaginação do espectador ao propor-lhe situações mostrando a interação do protagonista com as camadas oprimidas e sua aproximação da elite ilustrada que, finalmente, deve ter-lhe dado os meios para a conscientização que alterou drasticamente sua trajetória, assim como a informação sobre os quilombos que semeavam a revolta nos rincões do país, ilustrada por uma outra transformação, a da escrava Preta.
Por esse processo, o filme constitui uma fantasia histórica que tem os olhos voltados para uma reflexão sobre o presente, projetando em seus sinais os sintomas do mal-estar contemporâneo do país. E assim, desprovida de muletas didáticas, se afirma como uma obra instigante e eficaz.
(Por Neusa Barbosa, do Cineweb)
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