Por Paul Carsten, David Lewis, Reade Levinson e Libby George
MAIDUGURI, Nigéria, 12 Dez (Reuters) - Primeiro ele ouviu vozes, depois o barulho de tiros. Kaka rastejou até uma árvore e congelou de terror. O adolescente estava voltando para casa depois de pegar lenha no final de uma tarde de julho de 2020. À frente, ele viu um grupo de homens em um poço, a maioria com camuflagem do Exército nigeriano.
Eles estavam ao lado de uma fila de crianças com o rosto no chão, chorando por suas mães, lembrou Kaka. Perto dali, vários adultos estavam deitados --incluindo mães com bebês amarrados nas costas. Ele ouviu algumas vozes clamando a Deus.
Dois ou três homens já estavam mortos; os soldados atiraram em mais três. Eles mataram as mulheres em seguida, e depois as crianças, cortando seus gritos com uma saraivada de balas, disse Kaka. Os soldados arrastaram os corpos para uma cova pré-cavada, jogaram terra arenosa sobre eles e saíram.
Em pânico, Kaka partiu em direção a Kukawa, a cidade vizinha no nordeste da Nigéria onde ele morava. O jovem, agora com 20 e poucos anos, foi uma das cinco pessoas que contou à Reuters detalhes sobre a operação liderada pelo Exército e o disparo de tiros em massa contra pelo menos 10 crianças e vários adultos no poço naquele dia.
O massacre, relatado pela primeira vez, é apenas um caso em que o Exército nigeriano e as forças de segurança aliadas mataram crianças durante sua extenuante guerra de 13 anos contra extremistas islâmicos no nordeste do país, mostrou uma investigação da Reuters.
Soldados e guardas armados empregados pelo governo disseram à Reuters que os comandantes do Exército repetidamente ordenaram que eles "excluíssem" as crianças, porque elas supostamente colaboravam com militantes do Boko Haram ou do braço do Estado Islâmico, ou por terem herdado o sangue contaminado de pais insurgentes.
Assassinatos intencionais de crianças ocorreram com uma frequência indistinta em toda a região durante a guerra, de acordo com testemunhas entrevistadas pela Reuters. Mais de 40 fontes disseram ter visto militares nigerianos matarem crianças ou viram os cadáveres de crianças após uma operação militar. Essas fontes incluem pais e outras testemunhas civis, bem como soldados que disseram ter participado de dezenas de operações militares nas quais crianças foram massacradas.
Juntas, as estimativas somam milhares de crianças mortas.
A Reuters não conseguiu verificar cada uma dessas estimativas de forma independente. Mas os repórteres investigaram seis incidentes específicos e descobriram, com base em relatos de testemunhas oculares, que um total de pelo menos 60 crianças foram mortas nesses episódios, o mais recente em fevereiro de 2021.
Cada um desses incidentes, incluindo o massacre do poço, foi confirmado por pelo menos duas fontes que viram os assassinatos ou as consequências.
A maioria das crianças nas seis ações lideradas pelo Exército foram baleadas, algumas nas costas enquanto fugiam. Mas os soldados usaram uma variedade de métodos para matar. Testemunhas detalharam casos específicos em que soldados nigerianos também envenenaram e sufocaram crianças.
O Departamento de Estado dos Estados Unidos disse nesta segunda-feira que está "profundamente preocupado" com a reportagem da Reuters sobre a morte de crianças pelo Exército da Nigéria.
"Estamos buscando mais informações, inclusive do governo da Nigéria e das partes interessadas que trabalham neste espaço", disse um porta-voz do Departamento de Estado por e-mail.
Líderes militares nigerianos disseram à Reuters que o Exército do país nunca teve crianças como alvo deliberado para matá-las. Eles disseram que a reportagem neste artigo é um insulto aos nigerianos e parte de um esforço estrangeiro para minar a luta do país contra os insurgentes.
"Isso nunca aconteceu, não está acontecendo, não vai acontecer", disse o major-general Christopher Musa, que lidera a campanha de contrainsurgência no nordeste da Nigéria, sobre tais assassinatos. "Não está em nosso caráter. Somos altamente profissionais. Somos seres humanos, e esses são os nigerianos de quem você tem falado."
O general Lucky Irabor, chefe do Estado-Maior de Defesa da Nigéria, não respondeu aos pedidos de comentários. Em 2 de dezembro, depois que a Reuters compartilhou detalhes da investigação e perguntas detalhadas com seu gabinete, o diretor militar de informações de Defesa divulgou uma declaração aos repórteres.
O major-general Jimmy Akpor chamou os relatos da Reuters sobre assassinatos de crianças nesta reportagem de "alegações forjadas", de acordo com o comunicado. Os militares nigerianos, disse ele, são "criados, instruídos e treinados para proteger vidas, mesmo por sua própria conta e risco, especialmente quando se trata de crianças, mulheres e idosos".
(Reportagem adicional de Daphne Psaledakis em Washington)