Acho muito interessante como, ao ler colunas de colegas articulistas, o Brasil parece estar muito melhor do que parece. É estranhamente contumaz a maneira como, depois de descrever o estado absolutamente precário da nação, dão um jeito de tentar mostrar que, na verdade, as coisas estão melhorando.
Pessoalmente, acho um desserviço, embora não canse de me entreter com o contorcionismo envolvido em defender, a qualquer custo, a condução claramente fracassada da nossa nação sob a batuta de Jair Bolsonaro, Paulo Guedes e o antipetismo que encarnam. Isso nos leva a um fenômeno ainda mais bizarro, que é uma certa forma de negacionismo econômico. Cito alguns exemplos nos próximos parágrafos.
Temos quase 15 milhões de pessoas desempregadas, mas estamos gerando emprego; apenas 12% da nossa população foi imunizada, mas estamos avançando na vacinação; a inflação dá claros sinais de descontrole, com o IGP-M, que melhor reflete o momento atual, acumulando 37% em 12 meses; o dólar, por mérito do próprio governo, beirou os seis reais, mas, isso, supostamente, era algo bom.
Nosso rating de crédito está no patamar mais baixo da classe “Investimento Especulativo” e com perspectiva de cair para “Altamente Especulativo” (cf. World Government Bonds), puxado por Fitch que sinalizou uma piora de cenário futuro. Não vou sequer entrar no mérito das 520 mil vidas perdidas por uma mistura de negligência, estupidez e corrupção abjeta, nem no retumbante fracasso da política externa sob Ernesto Araújo, que literalmente colocou o Brasil na condição de pária global.
Quanto à instabilidade política crônica, é algo que precisamos nos preocupar apenas pontualmente, ao que parece. Afinal, quem poderia imaginar que depor uma presidente legitimamente eleita, num processo liderado por alguém que foi preso logo em seguida (Eduardo Cunha) em conluio com o vice-presidente (Michel Temer, que também foi preso) poderia passar a ideia de que somos uma republiqueta?
Mais ainda, quem em sã consciência poderia adivinhar que Bolsonaro, apesar de seu histórico amplamente conhecido, de todas as afirmações abertamente racistas, homofóbicas, antidemocráticas, enfim, acabaria gerando ainda mais instabilidade política? Ele mesmo, aquele presidente que vai ao Twitter para chamar de feia a esposa do presidente de uma das principais potências da Europa, e que a todo momento ataca a China, nossa principal parceira comercial?
Ao que parece, nada disso é importante perto de fazermos as tais “reformas” – propositalmente abstratas – e, claro, leiloar o patrimônio público, construído ao longo de décadas de contribuição coletiva. Isso porque, na cabeça de quem diz defender os/as contribuintes, a melhor coisa que podemos fazer é pegar esses investimentos de décadas e vende-los com brutal desconto, como no caso da Eletrobras (SA:ELET3) (que é emblemático, não apenas pelos jabutis, como pelo timing, bem no meio da pior crise hídrica dos últimos 90 anos).
Paul Krugman, Nobel em Economia, publicou um livro no qual discute os “zumbis da economia”. Isto é, ideias que morreram, mas continuam voltando à vida. Ao meu ver, especialmente nos países subdesenvolvidos (ou, vá lá, “emergentes”), caso do Brasil: precisamos de Estado mínimo, pouca ou nenhuma intervenção/regulação, baratear ao máximo a mão de obra (cortando direitos de quem trabalha), privatizar ao máximo e seguir à risca os interesses dos países ricos.
Poderia até ser o caso de zumbis, mas acho que a questão é mais profunda. Não é que essas ideias continuam ressuscitando, ainda que como carcaças podres. Não me parece tanto o caso. Tanto no Brasil como nos EUA e na Europa, a questão é muito mais direcionada ao negacionismo, que ganha força globalmente. Negação do contraditório, negação da ciência, negação da diversidade de crenças e opiniões. Negação, claro, da realidade econômica mais ampla, dando lugar à realidade limitada, seletiva e mesmo fantasiosa do alto mercado financeiro.
Engraçado, ainda, que esse negacionismo econômico nega até mesmo aquilo que afirma lhe ser mais caro. Ao negar a realidade mais ampla e ao negar, acima de tudo, qualquer proposta alternativa de política econômica, nega-se a própria concorrência e seu efeito transformador, inovador e benéfico. Não é a toa que, ao se alinhar com demais negacionismos, dá substrato ao protofascismo: para formar a unidade altamente coerente e homogênea do fascismo de fato, é preciso expurgar (negar) tudo que é diferente, ainda que de forma violenta.
Claro, dificilmente colegas liberais se dirão favoráveis ao fascismo, embora a proverbial “jornada de otários” se repita com assustadora frequência: por medo de golpe comunista imaginário, apoia-se o contragolpe da direita autoritária em nome do “livre mercado”, e às favas com a democracia. Foi assim com Hitler, Mussolini, Franco; foi assim com as ditaduras sul-americanas no Brasil, na Argentina e no Chile – mera coincidência que Paulo Guedes tenha trabalhado para o regime de Pinochet.
Graças ao negacionismo econômico e político, mais uma vez traduzido no antipetismo, chegamos ao protofascismo representado por Bolsonaro, cujo golpismo tramita à céu aberto. A não ser, é claro, que ignoremos a assertiva de que, se não tivermos voto impresso na eleição de 2022, o resultado será fraudulento (a não ser que ele vença) e que isso irá gerar toda sorte de confusão. Que, é bom lembrar, se liga a décadas de delírios golpistas durante sua trajetória como deputado do baixo clero e dezenas mais feitas na condição de líder do Executivo.
A questão que me pergunto agora é: será que continuaremos insistindo sistematicamente nesse negacionismo e a natureza protofascista do Bolsonarismo? Afinal, temos aí todos os elementos para dar o próximo passo rumo ao efetivo fascismo, que claramente mostrou as presas no ataque ao Capitólio, nos EUA, e na posterior negação do ataque por parte do Partido Republicano, que saiu em defesa de Trump, dos manifestantes e de toda sorte de teoria da conspiração.
Ao público que se diz ultra pragmático, deixem-me lembra-los que o fascismo na América do Sul não é bom para seus investimentos, caso a catástrofe humanitária e a ameaça de encerramento do regime democrático não sejam o suficiente para lhe convencer. Se traduzem em isolamento diplomático, saída de investimentos, arbitrariedade regulatória em todos os âmbitos da vida, enfim, um péssimo negócio – exceto caso você seja um/a gigante do agronegócio, visto que o dólar dispararia aos dois dígitos.
O estado do Brasil é preocupante. Muito preocupante. A solução passa pela defesa inquestionável da democracia, com todos os atritos que dela decorrem, porque para o bem ou para o mal, é o sistema que permite a maior estabilidade política, sem a qual não é possível investir. A reabilitação do Brasil passa pela superação, principalmente, do negacionismo ou, em bom português, que não dá pra sacrificar a democracia em nome de uma política econômica que, além de historicamente falha, foi sumariamente mal executada pela dupla BolsoGuedes.