A regulação de criptomoedas, por um lado, pode dar maior segurança jurídica para aqueles que as negociam por trazer regras sobre como devem ser feitas as transações. Contudo, por outro, pode ter o efeito reverso e resultar em entraves para o mercado que tem crescido no mundo todo após a entrada de investidores institucionais.
O mercado espera ter o mínimo de segurança jurídica para saber como lidar com os órgãos que atuam fiscalizando as operações com criptomoedas. Desta forma, a ausência de regulação específica pode ser algo perturbador para todos, mas ela precisa ser pensada.
Esse tema é sempre complexo, pois requer o conhecimento daquilo que se busca regular. Quando a questão são as criptomoedas, isso fica mais complicado. Moedas digitais não possuem natureza jurídica definida, podendo ser usadas como meio de troca, valor mobiliário e até mesmo commodities digitais.
No Brasil, atualmente, existem quatro propostas de regulação para esses ativos criptografados. A primeira delas foi apresentada à Câmara de Deputados ainda em 2015. O projeto de lei (PL) nº 2.303/2015, de autoria do deputado federal Áureo Ribeiro (Solidariedade/RJ), visa tratar criptomoedas e milhas aéreas como arranjos de pagamento a serem supervisionados pelo Banco Central (Bacen).
Quatro anos depois, o mesmo deputado apresentou um novo projeto (PL nº 2.060/2019), com o objetivo de regular apenas as criptomoedas para serem fiscalizadas pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e pelo Bacen, naquilo que couber. Nesse mesmo ano de 2019, o Senador Flávio Arns (Rede/PR) apresentou o PL nº 3.825/2019, que se pautou em regular a atividade dos marketplaces de criptomoedas, incluindo as exchanges.
Em 2020, foi a vez da senadora Soraya Thronicke (PSL/MS) apresentar o PL nº 4.207/2020. Este projeto busca regular as intermediações e negociações com quaisquer ativos virtuais, incluindo criptomoedas.
Criptomoedas como arranjo de pagamento
O primeiro projeto para regular as criptomoedas veio com apenas quatro artigos. Apesar de conciso, o PL nº 2.303/15 sugeriu que o Bitcoin e outras criptomoedas deveriam ser tratadas como uma espécie de arranjo de pagamento.
A proposta, caso seja aprovada com a atual redação, irá modificar outras leis já existentes. Uma delas é a Lei nº 12.865/2013, a qual trata dos arranjos de pagamento supervisionados pelo Bacen.
Além desta, também será alterada a Lei nº 9.613/1998, que dispõe sobre crimes de “lavagem” e ocultação de bens. Ela também é popularmente conhecida como a “Lei de Lavagem de dinheiro”.
O inciso I, do art. 9º, da Lei nº 12.865/13 atualmente menciona que a competência para disciplinar os arranjos de pagamento é do Bacen, conforme diretrizes estabelecidas pelo Conselho Monetário Nacional (CMN).
A ideia nesse projeto foi incluir nesse dispositivo a frase “incluindo aqueles baseados em moedas virtuais e programas de milhagens aéreas”.
Algo semelhante sucedeu sobre as operações financeiras que possam constituir-se em sérios indícios de crime de lavagem de dinheiro. Caso o projeto seja aprovado, o art. 11 da “Lei de Lavagem de Dinheiro” terá a inclusão de um dispositivo para tratar de operações suspeitas com criptomoedas e milhas aéreas.
À época, o projeto trouxe na sua justificativa que havia uma “preocupação crescente com os efeitos das transações realizadas por meios destes instrumentos”.
A proposta trouxe até mesmo um relatório especial do Banco Central Europeu (BCE) com o objetivo de expor os riscos do mercado de criptomoedas que deveriam ser monitorados.
No entanto, o próprio BCE afirmava que não havia a necessidade da introdução imediata de uma regulação mais ativa sobre criptomoedas.
Criptomoedas como valores mobiliários
O mesmo deputado, quatro anos depois, mudou de ideia e decidiu apresentar um novo projeto. O PL nº 2.060/2019 não podia ser comparado ao anterior. O foco foi a regulação de criptomoedas apenas.
Até mesmo o termo “moedas virtuais”, que é gênero e engloba moedas de jogos online foi trocado por “criptoativos”.
Nessa nova proposta, o objetivo foi de regular as criptomoedas de acordo com o seu uso. Já no art. 1º, o projeto menciona que os criptoativos “englobam ativos utilizados como meio de pagamento, reserva de valor, utilidade e valor mobiliário”.
Assim sendo, caso seja utilizado como valor mobiliário, caberá a atuação da Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Agora, caso o uso for como meio de pagamento, a competência deve ser do Bacen.
A proposta foi madura ao tratar no inciso III, do art. 2º, da diferenciação dos utility tokens e security tokens. Neste dispositivo, o PL nº 2.060/2019 estabelece que o “criptoativo de utilidade” não se submete a essa regulação, a qual tem foco em tratar tão somente dos ativos criptografados ofertados como investimento nos termos da Lei 6.385/76 ou usados como meio de pagamento.
Diferenciando tokens
A questão quanto a diferenciação de utility tokens e security tokens foi criada a partir de uma decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos ainda em 1946, em que envolvia discussão sobre a atuação da Comissão de Valores Mobiliários dos Estados Unidos (SEC, na sigla em inglês) sobre a oferta pública da Howey Company. Até então, não havia resposta para o que hoje se denomina contrato coletivo de investimento.
O parâmetro, então, foi estabelecer um teste para saber se (i) o contrato, em questão, envolve investimento de dinheiro; (ii) se é feito com uma empresa em comum e (iii) se há, na aquisição do contrato uma expectativa razoável de lucros derivados dos esforços de terceiros.
Caso as respostas sejam positivas, o que se tem é um valor mobiliário. Assim, então, surgiu o chamado “Teste de Howey”, usado até hoje pela SEC. No Brasil, os elementos do Howey Test estão na Lei de Valores Mobiliários, a qual definiu esse instituto como Contrato de Investimento Coletivo, cabendo nesses casos a atuação da CVM.
Luta contra as pirâmides
O PL 2.060/2019 se atentou também para a importância atualizada diante dos problemas envolvendo os reiterados casos de suspeita de esquemas ponzi e pirâmides financeiras com criptomoedas.
O autor do projeto sugeriu a modificação da chamada Lei de crimes contra a economia popular (Lei nº 1.521/1951), a fim de incluir o termo “pirâmide financeira” nessa lei e ainda aumentar a pena para práticas semelhantes.
Até então, a lei prevê pena de detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa para esse tipo de conduta. Ao invés de detenção, o projeto prevê a reclusão e a pena passaria para no mínimo um ano e no máximo a cinco anos, cumulando ainda com multa.
Em breve resumo, com a pena máxima abstrata em até dois anos caso fosse condenado o suspeito por prática de pirâmide financeira cumpriria em regime aberto desde que não fosse reincidente, podendo assim cumprir a pena em casa.
A mudança de detenção para reclusão também não foi à toa. O código penal deixa claro, no art. 33, que a detenção não pode ser cumprida em regime fechado. Esse tipo de regime só cabe nas penas de reclusão.
Os projetos nº 3.825/2019, do Senador Flávio Arns (Rede/PR) e nº 4.207/2020, da senadora Soraya Thronicke (PSL/MS) também expuseram preocupação quanto aos casos suspeitos com criptomoedas e reforçaram o controle da CVM em casos de oferta de investimento com esses ativos.
Essas duas propostas apresentadas no Senado, porém, buscam mais regular as atividades com criptomoedas do que definir o regime jurídico desses ativos tão complexos.
Exchanges reguladas pelo Bacen
O PL nº 3.825/2019 se preocupou na atuação das plataformas eletrônicas de negociação de criptomoedas, trazendo inclusive a competência do Banco Central para fiscalizá-las. Caso esse projeto seja aprovado, o funcionamento das exchanges no Brasil dependerá da aprovação delas no Banco Central, conforme já ocorre com as instituições financeiras.
O mesmo projeto reforçou ainda a atuação da CVM em casos de oferta pública de criptoativos nos moldes do contrato de investimento coletivo. Foi sugerida a inclusão das criptomoedas no art. 2º da Lei de Valores Mobiliários.
Além disso, a proposta deixou claro que deve haver a separação do patrimônio da exchange e dos ativos custodiados por ela em casos de falência.
Essa proposta sugeriu que aqueles que gerissem de modo fraudulento exchanges de criptomoedas passassem a responder pela Lei de crime contra o Sistema Financeiro (Lei nº 7.492/86), sob pena de reclusão de 3 (três) a 12 (doze) anos, e multa.
Se o caso envolvesse ainda a prática de pirâmide financeira, haveria aumento na pena mínima de três para seis anos de reclusão.
O projeto de lei nº 4.207/2020, por outro lado, mencionou que haveria aumento de pena para quem estivesse envolvido em esquema de pirâmide, mas o que houve na proposta foi apenas submeter os envolvidos à Lei federal de crimes contra o Sistema Financeiro, sob a mesma pena já prevista na Lei 1.521/51 (Lei de crimes contra a economia popular).
Ou seja, não muda coisa alguma na previsão legal de pena de detenção de seis meses a dois anos, e multa.
Aumentando a segurança nas transações
Apesar de o PL nº 4.207/2020 não avançar muito no ponto de atividade fraudulenta com criptomoedas, ele traz obrigações para as empresas que emitem, transacionam e intermedeiam esses ativos ao ponto de aumentar a segurança no mercado.
Ao mencionar que essas empresas devem manter o sistema adequado de segurança e controles internos, assegurando o sistema eletrônicocom adoção de medidas para evitar perda, deterioração ou furto de ativos virtuais, está a proposta dando mais segurança ao investidor.
O problema, porém, é que o projeto não menciona qual seria esse sistema adequado e quais seriam as medidas para evitar os mencionados riscos. Consequentemente, isso pode ir na contramão do desejado e aumentar a insegurança jurídica.
Por outro lado, há o reforço da atuação da Receita Federal na fiscalização sobre as transações com esses ativos, o que já é feito por meio da Instrução Normativa nº 1.888/2019. Sem pretensão de definir a natureza jurídica dos criptoativos, o PL nº 4.207/2020 prevê a atuação da CVM em casos em que as criptomoedas sejam usadas como valor mobiliário e do Banco Central em casos em que os ativos sejam usados como espécie de arranjo de pagamento.
Além disso, a proposta reforça a supervisão do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) em casos de suspeita de lavagem de dinheiro com criptomoedas. Uma questão estranha na proposta é tratar do instituto do Cadastro Nacional de Pessoas Expostas Politicamente (CNPEP) num projeto de regulação de transação de criptomoedas.
Por um lado, isso pode de um lado dar um aspecto negativo ao mercado e por outro, trata-se de uma matéria estranha ao objeto do projeto de lei.
Atuação da CVM e da Receita
Apesar da existência dos quatro projetos, não há um marco regulatório para criptomoedas no Brasil. Não ter regulação específica não é sinônimo de falta de regras nas suas transações.
Isso ficou mais nítido após a atuação da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) com fundamento na Lei nº 6.385/76 e da Receita Federal do Brasil (RFB), que trouxe a obrigatoriedade da declaração das operações com criptomoedas por meio da Instrução Normativa nº 1.888/2019.