Por Lisandra Paraguassu e Bernardo Caram
BRASÍLIA (Reuters) - O investimento do comando da transição para retirar o Bolsa Família do teto de gastos de maneira permanente --ou pelo menos por quatro anos-- enfraqueceu a discussão sobre a adoção de uma nova âncora fiscal pelo futuro governo Lula, provocando desconforto em ao menos um núcleo que assessora a mudança de poder em Brasília.
Nesta quarta-feira, o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva aprofundou o incômodo ao voltar a criticar o mecanismo de controle de gastos durante viagem ao Egito, ironizando as reações do mercado, refletidas na queda da bolsa e na alta do dólar frente ao real.
Foi a decantação de movimentos que já vinham contrariando investidores e administradores de fundos, que leram na chamada PEC da Transição, que inicialmente resolveria os problemas do orçamento de 2023, uma busca de uma solução perene para as restrições das contas públicas, sem pensar num substituto do teto.
Escolhidos para trabalhar no grupo de economia na transição, André Lara Resende, Persio Arida, Nelson Barbosa e Guilherme Mello ficaram alheios à negociação da PEC. Nesta quinta-feira, o quarteto se reúne em São Paulo para discutir o impacto dos últimos movimentos, incluindo a proposta de emenda que será votada no Congresso.
O encontro acontece depois que, na terça, Arida, que participou dos governos tucanos e funciona como espécie de selo de moderação do futuro governo, ter criticado publicamente a PEC. Ele disse que não via como necessária a excepcionalidade do Bolsa Família no teto de gastos.
Uma fonte que acompanha os movimentos do mercado e também circula entre integrantes da transição se mostra preocupada com as sinalizações até agora.
"O que passa é a ideia de que, resolvendo isso (o financiamento do Bolsa Família), não se precisa mais de novas propostas, porque já foi resolvido. Não precisa tirar o teto e colocar outra coisa no lugar porque já se furou o teto e se resolve com o teto capenga", disse a fonte.
A PEC propõe retirar o Bolsa Família do teto de gastos, permitindo que o orçamento do programa seja feito fora dos limites.
A proposta inclui ainda uma autorização para que parte de receitas extraordinárias fique fora do teto e possa ser redirecionada para investimentos, em um limite de 23 bilhões de reais, e também propõe retirar da regra do teto de gastos doações a universidades e fundos ligados à preservação do meio ambiente.
Com a exclusão do Bolsa Família do teto, defendem os negociadores, o governo tem dois benefícios: um deles é poder gastar mais com o programa e garantir os 600 reais por família, além de incluir o pagamento dos 150 reais por criança até seis anos, uma promessa de campanha de Lula.
O outro benefício seria liberar os recursos nesse momento reservados ao programa dentro do teto de gastos, 105 bilhões, para recompor o orçamento de outras áreas que foram praticamente dizimadas, como Farmácia Popular, merenda escolar e Minha Casa, Minha Vida.
Dentro da equipe de transição, de fato, as possíveis medidas para substituir o teto de gastos --que, desde que se lançou candidato, Lula prometeu terminar-- ficaram para o futuro.
Questionado sobre onde estaria essa discussão, o vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin, coordenador da transição, afirmou que a "questão da ancoragem fiscal será debatida com mais calma, não é neste momento."
Líder do PT na Câmara, e um dos negociadores da PEC, o deputado Reginaldo Lopes (MG), também afirma que esta é uma discussão que pode ser feita no futuro.
"Não adianta votar a PEC para um ano e daqui a um ano ter que votar outra. É ruim para economia, é ruim para o mercado, é assim que se começa a criar as desconfianças", defendeu. "A equipe econômica e o próprio presidente Lula, durante o ano de 2023, com tempo, com tranquilidade podemos reabrir esse debate. Talvez uma nova legislação no futuro possa combinar metas de responsabilidade social com metas de responsabilidade fiscal."
O diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI, ligada ao senado), Daniel Couri, avalia que a retirada integral e permanente do Bolsa Família da contabilidade do teto "desincentiva bastante" o novo governo e o Congresso a trabalhar para aprovar uma reforma estrutural que crie um novo arcabouço fiscal para o país.
"Em 2023 o crescimento da dívida já está contratado, mesmo se Jair Bolsonaro tivesse vencido. A questão é que isso vai acumulando para frente, sem uma sinalização de que vai haver compromisso com as contas públicas. A sinalização é muito ruim", disse.
Para Couri, se a nova gestão tivesse interesse em sinalizar compromisso fiscal poderia propor na PEC uma exigência de prazo para aprovação do novo arcabouço. Outra indicação fiscalmente positiva, segundo ele, seria retirar o programa social da regra fiscal, mas rebaixando o teto.
“Se a avaliação do governo fosse apenas de que o Bolsa Família não deve estar dentro do teto, tecnicamente o correto seria retirar do teto, mas ajustar a base, rebaixar o teto. Isso mostraria um teto novamente pressionado em 2023 e poderia levar a uma mudança (no arcabouço)”, disse.
Se confirmar, a solução somente via PEC, sem uma futura âncora fiscal, contraria o que havia sido sinalizado por assessores de Lula durante a campanha --o próprio petista, no entanto, nunca falou do tema.
Durante a campanha, como mostrou a Reuters, economistas envolvidos na preparação do programa de governo trabalhavam com duas hipóteses principais para substituir o teto de gastos.
Uma delas era a volta das metas de superávit primário como principal âncora fiscal do país, mas não com um valor fixo e sim com bandas que permitam ajustá-lo de acordo com os ciclos da economia. A medida daria mais liberdade ao governo para ajustar os investimentos públicos de acordo com as necessidades econômicas.
A segunda proposta previa uma regra de reajuste do limite das despesas pelo IPCA e por um outro indicador, ainda não definido, mas que abriria espaço para um crescimento real das despesas. A ideia, proposta por Fernando Haddad em seu programa de governo de 2018, é que o crescimento acima da inflação se desse principalmente nas despesas consideradas "nobres" --infraestrutura e gastos sociais-– evitando amarras, como acontece atualmente com o teto, que impedem o governo de investir mais mesmo tendo uma arrecadação maior do que previsto.
A expectativa é que o grupo técnico de economia na transição, justamente o quarteto formado por Guilherme Mello, Nelson Barbosa, Pérsio Arida e André Lara Resende, retome o assunto nas propostas de âncora fiscal a serem apresentadas a Lula. Politicamente, no entanto, o debate está adiado.