Ao aprovar a norma que amplia a responsabilização das plataformas sobre conteúdos considerados ilícitos, o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) driblou o Marco Civil da Internet, segundo especialistas consultados pelo Poder360.
Em 27 de fevereiro, a Corte Eleitoral aprovou as resoluções que devem guiar as eleições municipais de outubro.
Uma das normas, voltada para a propaganda eleitoral, determina que as big techs deverão identificar e remover conteúdos “notoriamente inverídicos ou gravemente descontextualizados que atinjam a integridade do processo eleitoral” mesmo sem a existência de uma decisão judicial prévia. O texto ainda estabelece que, caso o conteúdo não seja removido, as plataformas poderão ser responsabilizadas de forma solidária.
A regra parte de um entendimento de que as empresas têm “dever de cuidado” em relação ao conteúdo de seus usuários. A resolução estabelece um “rol de obrigações” relacionados a isso, mas sem previsão de multa. Segundo interlocutores do TSE, o texto apenas esclarece que existe uma jurisprudência que estabelece as prioridades para as plataformas.
De acordo com o advogado Marco Sabino, especialista em liberdade de expressão, a norma vai além do que é proposto no artigo 19 do Marco Civil da Internet. O trecho discute as circunstâncias em que um provedor de internet pode ser responsabilizado pelo conteúdo dos seus usuários.
Eis o que diz a norma:
- “Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.”
Sabino afirma que a Corte Eleitoral “inova” ao avançar na instrução e diz acreditar que a medida seria uma tentativa da Justiça de dar “maior celeridade” à remoção de conteúdos.
“O artigo 19 do Marco Civil da Internet não contém essa disposição e as instruções inovam a legislação. Isso seria uma competência do Congresso, porque, na hierarquia das normas, a Lei é superior à instrução normativa. Portanto, a instrução normativa seria de certa forma ilegal por incompatibilidade com a disciplina do “judition notice e takedown (aviso de julgamento e remoção, na tradução livre do inglês)” -que foi estabelecida no artigo 19”, diz o advogado ao Poder360.
“A gente sabe que decisão judicial é muito difícil sair no mesmo dia, muito embora a Justiça Eleitoral tenha prazo em horas, em finais de semana, em dias não úteis. Eles querem conferir rapidez, mas isso não pode se dar de maneira isolada e contrariando um dispositivo legal”, completa.
A Corte Eleitoral determina que as empresas também deverão adotar medidas para impedir a circulação de conteúdos considerados ilícitos. Terão de impulsionar publicações expondo quando forem inverídicas ou descontextualizadas. A regra valerá para conteúdos antidemocráticos, racistas, fascistas ou que apresente comportamento ou discurso de ódio, além de desinformação.
A medida se assemelha ao que foi realizado em 2022, quando o TSE formalizou um acordo com 8 plataformas para remover conteúdos considerados “danosos” ao processo eleitoral. A remoção, contudo, não era obrigatória. Para os especialistas, a falta de critérios nas novas resoluções pode ameaçar a liberdade de expressão no ambiente digital.
penumbra
Segundo o advogado Daniel Becker, especialista em Proteção de Dados e Regulatório de Novas Tecnologias, Inteligência Artificial no BBL Advogados, existem conteúdos que entram em uma “zona de penumbra” na classificação do que é ou não desinformação ou discurso de ódio. Ao atribuir às redes sociais a responsabilidade de fazer a avaliação sob o risco de uma penalidade financeira, a tendência, de acordo com o advogado, é um controle muito mais rigoroso que pode levar à censura.
“O efeito pode ser reverso. Pode criar um cerceamento da liberdade de expressão pelas plataformas, porque elas vão ser obrigadas a evitar e censurar, sob pena de responsabilidade. É questão de incentivo, de economia comportamental. Você cria um incentivo financeiro para as plataformas derrubarem uma grande parte de conteúdos e aí você cerceia a liberdade de expressão”, afirma ao Poder360.
Becker diz que a Corte decidiu se antecipar sobre o tema por sentir que seria afetada pelo avanço da desinformação, principalmente pela IA (Inteligência Artificial), nas eleições municipais, mas que a norma não se faz necessária.
O advogado afirma ainda que o meio correto para a discussão sobre o papel das plataformas é o Congresso Nacional – que discute o tema por meio do Projeto de Lei 2630, conhecido como PL das fake news.
O Poder360 entrou em contato com a Meta e o Google (NASDAQ:GOOGL) para questionar as empresas sobre a norma do TSE. O Google diz que não vai comentar a questão. Já a Meta aguarda a publicação da resolução para se manifestar.
DISCUSSÃO NO CONGRESSO
A responsabilização de redes sociais pelos conteúdos dos usuários é uma pauta discutida no Judiciário e no Legislativo.
No Judiciário, há 3 ações no STF (Supremo Tribunal Federal) que tratam da responsabilização das plataformas por conteúdos publicados. Duas das 3 ações chegaram a entrar na pauta do Supremo em maio de 2023, mas foram retiradas a pedido dos relatores, os ministros Luiz Fux e Dias Toffoli. Os magistrados paralisaram a discussão para aguardar um avanço do Legislativo.
No Congresso, o tema é discutido no PL das fake news, que não teve nenhuma movimentação na pauta do plenário da Câmara desde maio de 2023. Nesse período, os ministros da Corte verbalizaram publicamente sobre a necessidade de uma legislação sobre o tema.
Em setembro de 2023, o ministro Alexandre de Moraes disse que o Congresso está “devendo” uma regulamentação sobre as redes sociais. Em fevereiro deste ano, repetiu a cobrança durante a abertura dos trabalhos no TSE em 2024.
O magistrado é um grande defensor da discussão e afirma que é necessária a responsabilização das big techs. Em abril de 2023, foi chamado pelo Congresso para apresentar sugestões para o PL das fake news.
A principal delas tem teor semelhante ao que a Corte Eleitoral estabeleceu na nova resolução: sugere que as plataformas sejam “solidariamente responsáveis” por conteúdos “direcionados por algoritmos” ou impulsionados com pagamentos feitos às redes.
Além disso, devem “indisponibilizar imediatamente conteúdos”, sem a necessidade prévia de notificação aos usuários, quando “verificarem ou existir dúvida fundada de risco”.
Uma das 5 sugestões de Moraes foi parcialmente acatada no projeto e diz respeito à responsabilidade das plataformas.
O texto inicial estabelece que as big techs sejam responsabilizadas civilmente por publicações indevidas de seus usuários. O projeto também diz que, quando houver patrocínio de desinformação, ou seja, quando um usuário paga a plataforma para que o conteúdo seja entregue a mais pessoas, a empresa será corresponsável pela publicação.
O trecho foi rechaçado pelas plataformas, que afirmam que há incertezas sobre o que se enquadra para a remoção do conteúdo.