SÃO PAULO (Reuters) - Eduardo Coutinho começou e terminou a vida de cineasta como um homem simples, direto e, mesmo sem querer, contundente, emocionante.
De maneira alguma ele poderia ter previsto seu fim trágico, em 2014, e os rumos que, por isso, tomaria seu derradeiro longa, que por conta de sua morte se chamou "Últimas Conversas" e terminou sendo um trabalho coletivo, montado postumamente por João Moreira Salles e Jordana Berg, seus fieis escudeiros de tantos anos, ele como produtor, ela como montadora.
Guindado, com justiça, às alturas como um dos maiores documentaristas do país e do mundo a partir da realização exemplar de "Cabra Marcado para Morrer" (1984) –uma das maiores sínteses do Brasil de todos os tempos-, Coutinho vinha, cada vez mais, esmiuçando a simplicidade e explorando suas nuances.
Recusando experimentações estéticas, mergulhara fundo na seara minimalista, por exemplo, em "As Canções" (2011), que investigava a ligação emocional de pessoas com músicas que pautaram suas vidas.
Sempre obcecado pelo homem comum, o diretor mergulhou neste derradeiro filme no mundo dos jovens entre 16 e 18 anos que concluíam o ensino médio em escolas públicas no Rio de Janeiro. Nunca antes estivera tão exposto, já que poucos universos podiam ser-lhe tão estranhos e distantes.
Por isso mesmo, foi particularmente feliz a decisão de Salles e Jordana de incluir Coutinho como o primeiro personagem em cena, discutindo em aberto sua crise com este projeto. Duvidava do material que havia filmado. Julgava que tinha falhado, "Jovem vem moldado, com um cinismo e arrogância de quem sabe tudo. Devia ter feito com criança", arrependia-se.
Quem conhecia Coutinho, como Salles e Jordana mais do que ninguém, sabia que estas crises eram comuns, parte de seu processo de trabalho, do qual ele evidentemente sempre sacava soluções, crítico implacável de si mesmo que era. Nunca saberemos o que ele mesmo teria feito com estas entrevistas, como as teria montado. Mas é fato que ele está presente em todas as entrevistas desta versão possível.
Independentemente de qual tenha sido a intenção original, é um retrato provisório deste novo Brasil, fruto das recentes mudanças sociais, o que bate na tela, nos rostos destes jovens, que falam de bullying, religião, conflitos familiares, abusos, preferências musicais. Quando Coutinho pede a um deles que lhe mostre o que está ouvindo no celular, o humor é involuntário, mas claríssimo ao mostrar o quanto o diretor octagenário está diante de códigos que não domina.
Coutinho evidentemente sabia ter entrado em território desconhecido –e isto é o que o motivou sempre a embarcar num filme– e pergunta, pergunta, incansavelmente, diante destes novos brasileiros que se afirmam numa realidade que os favoreceu um pouco mais, mas diante da qual eles ainda têm tantas dúvidas e desafios, inclusive uma natural inconsciência sobre o futuro.
Temas candentes se intrometem nas conversas, como intolerância racial e cotas. Mas nenhum discurso, nenhum recado se anuncia. São simplesmente jovens pessoas em formação, em transição, indo adiante.
Se pretendia fazer um filme sobre crianças (quem sabe o faria?), pelo menos uma está presente na tela, fechando as entrevistas. O encontro desta menina com Coutinho é dessas sequências dignas de figurar em qualquer futura antologia como uma das mais luminosas já registradas num documentário.
Depois dela, somos tomados pela angústia, o desejo de que o filme não acabe, para não encarar o fato de que Coutinho não mais nos brindará com outras imagens. Um singular testamento este, tecido por um trágico acaso.
(Por Neusa Barbosa, do Cineweb)
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