SÃO PAULO (Reuters) - Baseado numa peça do começo dos anos de 1980, "Do Fundo do Lago Escuro" – com uma remontagem recente, na qual o próprio autor, Domingos de Oliveira, fazia o papel da protagonista, sua avó –, "Infância" é uma combinação das memórias do diretor, talvez o cineasta brasileiro que melhor tenha lidado com a questão da paixão e do afeto, em filmes como "Amores" (98), "Separações" (2002) e "Juventude" (2008).
Mais fiel do que nunca à máxima machadiana de que o menino é pai do homem, Domingos esconde-se por trás do alter ego infantil Rodrigo (o estreante Raul Guaraná). Aos 8 anos, o garoto está no limiar de muitas mudanças vitais, inserido num fechado e aristocrático clã familiar, morador de uma mansão no bairro carioca do Botafogo.
A família é dominada pela matriarca dona Mocinha (Fernanda Montenegro), uma viúva que exerce um comando nada sutil sobre a vida de filhos, genro, neto e empregados. No entanto, esse domínio está se esfarelando a olhos vistos, pressionado pela realidade em transformação.
A senhora, que não admite separações de casais, teve que engolir o rompimento do matrimônio do filho, Orlando (Ricardo Kosovski), um madurão na meia-idade ocioso e chegado à bebida.
O genro Henrique (Paulo Betti), marido de sua filha Conceição (Priscila Rozenbaum), é quem administra os bens. Ele vendeu, sem a sogra saber, alguns terrenos no Andaraí, supostamente porque a situação econômica exigia. Agora, quem tem coragem de contar à dona Mocinha o que acontece?
Nessa dificuldade cada vez maior de se conectar com uma realidade em crescente mudança está o dado central do filme, cujo enredo lida com o tempo, sua passagem, seus efeitos.
Também o menino é passageiro do tempo, no sentido contrário ao da avó, tendo que aprender rapidamente como funciona este mundo adulto em que nem todas as verdades são admitidas - como o verdadeiro destino de sua cachorrinha desaparecida, que ele terá que descobrir por si mesmo.
Ambientada em 1950, a história incorpora um componente político. Fã ardorosa do político e jornalista conservador Carlos Lacerda, dona Mocinha aguarda impaciente o horário de seu programa no rádio, em que ele vocifera ácidas críticas contra a campanha presidencial de Getúlio Vargas.
A rigidez das regras da casa, que desmoronam irresistivelmente inclusive sob o peso da hipocrisia, contrasta com a liberdade da fantasia do menino Rodrigo, que viaja nas leituras, sonhando com a carreira de futuro escritor.
O diretor, que costuma trabalhar com baixos orçamentos, na casa dos 100 mil reais, desta vez teve um pouco mais de fartura, contando aqui com cerca de 2 milhões de reais.
O aporte permitiu uma produção visivelmente mais requintada, especialmente no aspecto da fotografia (de Paulo Violeta) e montagem (Tina Saphira).
Esta maior sofisticação formal sustenta melhor o aspecto da fantasia do enredo, ao qual nunca falta o toque amoroso de Domingos: como quando ele, quase octagenário, divide a cena com o menino-personagem, numa licença poética que revitaliza o encanto da história.
No mais, "Infância" conserva aquela que é a melhor característica do diretor, roteirista, dramaturgo: o amor por seus personagens.
Mesmo quando os mostra em contradição, em atitudes pouco edificantes, ele nunca os julga nem expõe. Pelo contrário, tece em torno deles uma aura de carpintaria teatral delicada, que revela sua humanidade, sua conexão com toda a humanidade, capaz de despertar a identificação com o público, pelo humor, pela ternura, até mesmo pela compaixão.
(Por Neusa Barbosa, do Cineweb)
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