SÃO PAULO (Reuters) - O que impulsiona Saul a fazer coisas impensáveis dentro de um campo de concentração? O personagem, interpretado pelo poeta e ator húngaro Géza Röhrig, é um mistério ao longo dos cento e poucos minutos de “O Filho de Saul”.
Ao mesmo tempo, ele é tão humano que é impossível não compreender suas motivações e simpatizar com ele – mesmo que não fiquem totalmente claros os seus motivos. Confinado num lugar que, embora não nomeado, parece ser Auschwitz, ele tem uma posição peculiar, fazendo parte do Sonderkommando, um grupo de prisioneiros cujo trabalho é limpar as câmaras de gás após as execuções e remover os cadáveres.
Ninguém escolhe estar nessa função. As pessoas evidentemente eram recrutadas, não podiam negar, pois seriam mortas também. E, ao aceitar, também sabiam estar assinando sua sentença de morte, porque ninguém ficava muito tempo nesse posto, pois eram Geheimnisträger – guardadores de segredos, conforme explica o letreiro no início do longa.
O filme se concentra na experiência de Saul a partir do momento em que vê que um garoto que saiu da câmara de gás e ainda está vivo – mas não fica assim por muito tempo, pois um oficial logo trata de acabar com a agonia. Saul, então, clama que este é o seu filho e decide que, a partir de sua “posição privilegiada”, vai dar um enterro digno ao menino.
Para tal, precisa encontrar entre os outros prisioneiros um rabino. É uma jornada que o levará ao submundo de um inferno, onde propinas e chantagens são a moeda de troca. A câmera, assinada por Mátyás Erdély, está literalmente colada em Saul, que aparece em praticamente em todas as cenas. O senso de desorientação proposital do filme – dirigido pelo estreante László Nemes – também é propiciado pelo trabalho de som, muitas vezes composto de ruídos, conversas e sussurros de pessoas que estão fora do quadro.
Enquanto Saul procura o rabino, ele também descobre que outros membros do Sonderkommando estão organizando uma rebelião para destruir câmaras de gás, e ele é recrutado para ajudar. Sem muita opção, acaba se juntando a eles na esperança de conseguir a simpatia dos colegas ao seu objetivo, tornando-se um rebelde por acidente.
O filme de Nemes – cujo roteiro é assinado por ele e Clara Royer – toca em alguns temas polêmicos, entre eles o Sonderkommando, mostrando que eles não eram colaboradores, mas tão vítimas quanto os demais prisioneiros, e todos eram tratados iguais.
O que talvez possa distingui-los dentro da dinâmica de um campo de concentração era sua posição e testemunho. Por isso, ao fazer de Saul o foco de todo o longa, o diretor traz uma abordagem distinta de muito que se viu sobre o assunto. O enterro do filho funciona de forma simbólica como o propósito que move o protagonista, mas é a investigação de diversos círculos de poder e horror que interessa ao cineasta. É pelos olhos assustados e incrédulos do personagem que compreendemos seu horror – que se assemelha ao de muitos.
Com o formato de tela quadrado e a câmera grudada em Saul (e seu entorno geralmente borrado), Nemes parece apontar que no relato de um homem pode conter todo o contexto de um momento histórico. O diretor estreia em longa, depois de trabalhar como assistente do veterano cineasta húngaro Bela Tárr, e mostra um domínio da linguagem cinematográfica especialmente no sentido de convergir forma e conteúdo, criando um diálogo entre o que se vê na tela e como retrata a trama.
A proposital confusão cênica espelha o desnorteamento de seus personagens diante do destino inevitável. Os barulhos, os borrões da imagem, tudo contribui no sentido de tirar o sentido do público. Nemes consegue um feito raro, trazer uma visão nova para um assunto já tão abordado pelo cinema, o Holocausto.
Favorito ao Oscar de melhor filme estrangeiro (representante da Hungria) – e já ganhador do Globo de Ouro na categoria –, “O Filho de Saul” estreou mundialmente na mostra competitiva do Festival de Cannes, em 2015, de onde saiu com um inexplicável Grande Prêmio do Júri (uma espécie de medalha de prata), perdendo a Palma de Ouro para o equivocado “Dheepan: O Refúgio”, do francês Jacques Audiard, um grande cineasta, num momento fraco com essa obra.
(Por Alysson Oliveira, do Cineweb)
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