Por Aluisio Alves
SÃO PAULO (Reuters) - Patrick criou um negócio para ajudar empresas médias a fazer conciliação contábil. Percebendo a dificuldade de vários clientes para fazer uma gestão integrada do caixa, ele decidiu também entrar na seara de pagamentos digitais.
Semanas atrás, chamado a comparecer aos escritórios do Banco Central, Patrick se preparou para dar explicações por ter começado a atuar num setor fortemente regulado, o de meios de pagamentos, sem ter atendido a todas as exigências.
Em vez disso, o oficial do BC o fez ver que sua empresa poderia ter uma atuação muito mais abrangente no mercado de pagamentos do que ele já oferecia. "O BC deu um vislumbre maior do que poderíamos fazer", diz Patrick Negri, da iugu, plataforma online de automação de pagamentos. "Fiquei atônito."
O episódio ilustra a surpreendente reviravolta do regulador, que após décadas chancelando a concentração bancária, mais recentemente escancarou a porta para a concorrência, movimento que teve uma guinada desde que Ilan Goldfajn, ex-economista-chefe do Itaú Unibanco, assumiu o comando em 2016. Por meio de uma campanha batizada de Agenda BC+, Ilan vem liderando uma cruzada para desmontar estruturas antigas do mercado bancário, que mantêm tarifas e taxas de juros cobradas dos clientes entre as maiores do mundo.
Essa ofensiva, que incluiu limites ao uso de produtos de crédito com taxas mais altas, como cartões de crédito e cheque especial, envolveu também a exigência para os bancos desfazerem barreiras de acesso de concorrentes a câmaras interbancárias. E, claro, abrir a porta para as fintechs. Hoje já são mais de 400, incluindo de pagamentos eletrônicos, emissão de cartões de crédito, gestão de recursos de terceiros, contas correntes e empréstimos para pessoas e empresas.
Outras inovações regulatórias estão no forno e devem criar dores de cabeça maiores para os grandes bancos. Ainda para este ano deve sair um regulação sobre open banking, como já existe na Europa, que passa para os correntistas o poder de decidir quem pode ter acesso aos seus dados bancários, dando eventualmente acesso para que outras instituições lhes ofereçam serviços, como seguros, cartões de crédito e empréstimos.
A justificativa para essa campanha está na ponta da língua dos executivos do BC: "Não estamos satisfeitos com o nível de concorrência na indústria financeira", disse o diretor de regulação do BC, Otavio Damaso, em entrevista recente à Reuters.
Com quase 90 por cento dos cerca de 8,6 trilhões de reais de ativos do sistema financeiro do país nas mãos dos cinco maiores bancos, a concentração virou um entrave capaz de inviabilizar ferramentas de estímulo à concorrência.
E com o cenário macroeconômico mais estabilizado nos últimos anos, abriu-se espaço para maior foco na agenda microeconômica. Assim, inspirado em bem sucedidas experiências globais de incentivo à concorrência, o BC desde 2013 deixou a inovação acontecer, permitindo que as fintechs atuassem como uma espécie de prestadoras de serviços para bancos médios e cooperativas de crédito, que já têm aval regulatório para operar.
Empreendedores aproveitaram-se de inovações tecnológicas como computação em nuvem e big data e desenvolveram produtos bancários com acesso todo digital. Seria um problema há cinco anos, quando a maioria das transações bancárias ainda era presencial. Mas isso mudou rápido após o número de linhas móveis superarem a proporção de um por habitante no país.
Daí em diante, foi esperar as coisas acontecerem. "Adotamos uma postura de deixar entrar, deixar competir e regular apenas quando necessário", disse Ilan em palestra recente.
E os resultados dessa campanha ganharam números superlativos num período relativamente curto. O Nubank, primeira e mais conhecida plataforma digital de cartões de crédito, já emitiu mais de 5 milhões de cartões. O Banco Inter (SA:BIDI4), que estreou na bolsa no começo do ano e também opera pela internet, tem clientes em mais de 5 mil cidades, marco superior até ao de alguns dos grandes bancos. O aplicativo de finanças pessoais GuiaBolso atingiu 4,5 milhões de clientes.
"Muitas pessoas não têm conta em banco, mas têm um smartphone e isso mudou a relação das pessoas com os bancos", diz Damaso, do BC.
REVIRAVOLTA
O convite do BC à concorrência é um movimento não trivial para um órgão por muito tempo visto pelo público como amigo dos grandes bancos. Dado o foco em manter a higidez do sistema num país vitimado por sucessivas crises econômicas, o BC nas últimas décadas deu ênfase à agenda macroeconômica. E para evitar que a fragilidade de alguns bancos devido a crises contaminasse os demais, muitas vezes azeitou processos de concentração bancária.
Mas o BC também foi voraz contra inovações que visse como potenciais ameaças ao sistema. Em 2010, chegou a acionar a Polícia Federal contra uma fintech, a Fair Place, que operava empréstimos entre pessoas. O negócio foi fechado. "Hoje percebemos que exageramos", disse um oficial do BC à Reuters, sob condição de anonimato.
A virada da chave veio com a percepção do regulador de que os grandes bancos não estavam se empenhando na inovação, mas defendendo pautas antigas, como redução dos compulsórios. Para não agredir a regulação, o BC exigiu que as associassem a instituições financeiras que já atuavam no mercado, o que teve o efeito secundário de impulsionar bancos médios, segmento que encolheu forte na última década, e às cooperativas de crédito.
"Sem o envolvimento do BC, o advento das fintechs simplesmente não teria acontecido", disse Claudio Guimarães Júnior, diretor geral da Associação Brasileira de Bancos (ABBC), que reúne bancos médios e pequenos. "E isso acabou também dando um fôlego para os bancos médios."
Ainda assim, surgiram alguns modelos de negócios, como o de empréstimos entre pessoas, para os quais simplesmente não havia regulação. Por isso, empreendedores buscaram retaguarda jurídica de grandes escritórios de advocacia para evitar terem o mesmo destino da Fair Place.
"O BC questionou alguns modelos e perguntamos se era proibido. Como a resposta foi não, decidimos tocar adiante", conta Bruno Balducini, sócio do escritório de advocacia Pinheiro Neto, um pioneiro na área de inovação da indústria financeira.
De monitoramento à distância, a postura do BC passou a ser a de gradualmente acelerar a concessão de registro formal de operação. E o nicho em que isso aconteceu com mais velocidade foi o de pagamentos eletrônicos. Após quase uma década sem nenhum novo player nesse mercado, só nos últimos dois anos o BC aprovou mais de duas dezenas de novas empresas.
Uma consequência disso foi a queda contínua das taxas cobradas de lojistas. E a base de estabelecimentos que aceitam cartões, após três anos em queda, voltou a crescer neste ano. Na outra ponta, a proliferação de plataformas digitais de cartões, incluindo pré-pagos, de débito e de crédito, quase sempre isentando os clientes de taxas, ganhou imediatamente as graças do consumidor.
Segundo a Abecs, entidade das empresas de pagamentos, as compras pagas com cartões no Brasil cresceram quase 14 por cento no primeiro semestre, maior crescimento em quatro anos. Com isso, a fatia dos cartões no pagamento de gastos das famílias subiu 2,3 pontos percentuais ano a ano, ao recorde 34 por cento do consumo privado.
Percebendo a rápida resposta do mercado ao aumento da competição, o BC mudou outra vez de tom, passando nos bastidores a estimular a entrada de mais instituições. "Nós começamos a dizer aos empreendedores: Ei, acordem, olhem a oportunidade que vocês têm de crescer", disse Damaso.
Uma das frentes nas quais o regulador espera ver resultados é do custo dos empréstimos. Neste caso, os efeitos isolados da multiplicação das fintechs deve levar mais tempo para acontecer.
No financiamento ao consumo, por exemplo, especialistas do setor dizem que as plataformas digitais sozinhas devem liberar mais de 2 bilhões de reais em novos financiamentos neste ano. Parece bastante, mas isso significa menos de 10 por cento do que o sistema faz num único mês.
Mas segundo o BC, combinada com outras medidas de caráter macro, a taxa média de juros das concessões de crédito com recursos livres teve recuo de 13,8 pontos percentuais de dezembro de 2016 até agosto passado.
Consultado, o BC afirmou em nota que "a agenda BC+ não se encerrou e diversas iniciativas continuam sendo desenvolvidas e implementadas."
BANCOS INSATISFEITOS
Em linha com o discurso histórico pró-competição, os grandes bancos inicialmente mantiveram o discurso público de que não estavam preocupados com a chegada das fintechs, chegando a admitir que elas expuseram ineficiências do sistema. Alguns deles, inclusive, vêm comprado fatias de algumas dessas plataformas ou buscado parcerias.
Porém, à medida que esse movimento veio acompanhado de medidas para obrigar os grandes bancos a dar acesso à câmara de compensação e derrubar barreiras de acesso de rivais ao débito automático de seus clientes, declarações de insatisfação que antes eram reservadas passaram a se tornar públicas.
"A regulação tem que ser igual para todos os que oferecem os mesmos serviços para manter igualdade de condições entre os concorrentes", disse recentemente o presidente-executivo do Itaú Unibanco, Candido Bracher, referindo-se entre outros fatores às maiores exigências regulatórias de capital.
No mês passado, Bracher também reclamou que o BC foi muito rigoroso ao vedar a aquisição do controle pelo banco da plataforma independente de gestão de recursos XP Investimentos, uma das fintechs de maior visibilidade no mercado. Em rodas informais de conversas entre executivos de bancos, Ilan tem jocosamente sido chamado de "traidor".
A visibilidade do tema fez o assunto mais recentemente ganhar a esfera política, com o apoio à expansão das fintechs para baratear o crédito ser parte comum das propostas de governo dos principais candidatos à presidência da República. O próprio BNDES está selecionando fintechs para tentar resolver um de seus problemas mais antigos, a dificuldade de fazer seus recursos chegarem a empresas médias e pequenas, o mesmo público da iugu.
(Com reportagem adicional de Marcela Ayres, em Brasília)