Por Jessica Bahia Melo e Leandro Manzoni
Investing.com - O terceiro dia da 15ª Cúpula dos presidentes do BRICS confirmou as expectativas no aumento do número de membros no grupo criado em 2009. Os líderes do Brics convidaram, nesta quinta-feira (24) em Joanesburgo (África do Sul), Arábia Saudita, Irã, Etiópia, Egito, Argentina e Emirados Árabes Unidos para aderir ao grupo, atualmente formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul.
Os novos membros serão aceitos após o cumprimento de critérios que ainda não foram divulgados e participarão efetivamente do grupo a partir de 1° de janeiro de 2024.
Os escolhidos e o momento histórico da entrada de novos participantes chamaram a atenção de especialistas ouvidos pelo Investing.com. Temas como desdolarização da economia mundial e contestação da ordem geopolítica atual liderada pelos EUA foram citadas.
Confira abaixo os principais pontos para entender essa expansão.
O que significa a expansão do Brics?
O processo é uma espécie de vitória da diplomacia, pois todas as partes tiveram que fazer concessões, na visão de Leonardo Trevisan, professor de Relações Internacionais da ESPM e especialista em geopolítica e economia global.
“Quando a reunião dos Brics começou, era claro de que a China tinha pretensão muito definida de ampliar bem o Brics. A China vem sendo cercada pelos americanos e pelo G7 e, de alguma forma, queria ampliar a projeção. O Brasil e a Índia foram cautelosos, pois ampliar demais o grupo poderia distorcer a agenda e aumentar as tensões, dificultando a convergência. A linguagem mais cautelosa se contrapõe à visão mais firme da China”.
Momento histórico
“Mas, a expansão ocorre quando um dos países-membros, a Rússia, está abertamente em rivalidade geopolítica e militar com os EUA”, argumenta Alcides dos Reis Perón, coordenador da graduação de relações internacionais da Fecap. A China, por ser uma aliada incondicional dos russos desde antes da invasão da Ucrânia, também está em rota de colisão com os EUA, especialmente em disputas territoriais da China com países do Sudeste Asiáticos no Mar do Sul da China.
Perón observa que os BRICS provavelmente devem começar a ter um caráter político antagônico em relação à atual ordem global, o que difere dos objetivos iniciais da organização: um bloco de países com economias emergentes em ascensão e com similaridades econômicas, políticas e sociais que buscam uma revisão de alguns parâmetros da ordem atual, como maior participação e poder decisório em agências multilaterais da ONU.
Desdolarização
A entrada da Árabia Saudita renova o debate sobre eventual desdolarização futura da economia mundial, segundo analistas do banco ING disponibilizado a clientes. Por ser o maior exportador mundial de petróleo, os sauditas poderiam negociar a commodity em iuan chinês ou em rúpia indiana, desbancando o dólar, entre os países-membros do BRICS. No entanto, os próprios analistas do ING vêem o cenário como pouco provável, devido ao rial saudita, moeda da Arábia Saudita, ter um valor fixo atrelado ao dólar.
“Estamos muito longe de ter um processo de desdolarização da economia internacional”, concorda Perón com o ING, que não vê força o suficiente do iuan chinês em desbancar o dólar devido a uma característica peculiar do mercado financeiro: o forte controle estatal. “Isso inviabiliza o processo de criação de uma moeda especulativa, como os EUA fizeram com o dólar no passado”, completa o professor da Fecap, que também não vê interesse do governo chinês na internacionalização de sua moeda como reserva de valor financeiro global.
Quais foram os critérios para escolha dos países
Perón da Fecap aponta que todos os novos países entrantes têm um ponto em comum. “Todos eles têm uma certa proximidade econômica e política com os países líderes do BRICS, além de serem peças chave para a expansão de uma ordem econômica própria sob a iniciativa One Road, One Belt da China e de aumento de capacidade da influência dos bancos dos BRICS”, analisa.
“Nações não tem amigos, só têm interesses”, reforça o professor Trevisan da ESPM, que acredita que o Brasil imaginava uma expansão mais cautelosa, assim como a Índia, de dois ou até três países. A inclusão do Irã tem sentido mais forte, principalmente para a China, em momento de intensa polarização com os Estados Unidos.
Trevisan avalia que a sensação foi de que o critério de escolha foi muito mais geopolítico do que econômico. “O Brasil queria incluir dois sócios, que seriam dois primos ricos, Arábia Saudita e Emirados Árabes, que têm poder de fogo financeiro bastante evidente”.
Segundo o professor, o Brasil aproveitou a oportunidade para fazer uma espécie de inclusão necessária localmente, que era a da Argentina.
“Mesmo se houver um governo de ultradireita eleito, o país vai precisar de dólar, de apoio internacional. O Brasil olhou para isso e pensou que teria uma moeda de troca com qualquer que seja o futuro governo argentino, com a manutenção do Mercosul, com apoio internacional não só do Fundo Monetário Internacional (FMI), mas via yuan e via um apoio pelo banco dos Brics, com cacife de dois sócios ricos”, completa.
Contraponto geopolítico
Durante a cúpula do Brics, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, destacou que a coalizão pode ser coerente com seus propósitos sem optar por um antagonismo a outros países, em referência à escalada de tensão entre o Oriente e o Ocidente. Com a guerra entre Rússia e Ucrânia, o tom subiu, e as discordâncias se tornaram mais evidentes. Nos últimos anos, ficou mais clara a oposição de Vladimir Putin, presidente da Rússia, e Xi Jinping, líder chinês, frente ao G7.
Para Trevisan, a China tinha a pretensão de usar o bloco como referência para um maior antagonismo, opinião que não era corroborada por Índia e Brasil, que não possuem interesse em sair de perto do G7. A Índia pode precisar muito do Ocidente para conter o dragão chinês, enquanto o Brasil não teria interesse em um freguês só. A disputa pela hegemonia não diz respeito aos dois países, que ficam de longe dessa briga, sem apontar alinhamento claro com preferências.
Corrente de comércio
A perspectiva é de expansão da corrente de comércio entre os países participantes do bloco, incluindo a construção de negociações no Mercosul baseadas em iuan. Haddad afirmou que o Brasil poderia aceitar garantias de exportações à Argentina baseadas na moeda chinesa, em um momento de escassez de dólares dos hermanos.
“O Brasil deixou claro que não há intenção de desdolarizar, mas que, quando os países façam negociações entre si, utilizem uma unidade de referência, para não ser obrigado a suportar valorizações e desvalorizações do dólar. O dólar não pode ser a única referência. Me pareceu um avanço e não uma provocação”, acredita Trevisan.
Segundo o professor da ESPM, os EUA terão que entender que talvez o dólar não seja a única moeda de referência internacional. “Há uma possibilidade de avanço nesse sentido e é bom para preservar o que sobrou de globalização”, completa.
Qual vai ser a reação do G7?
A reação será de cautela, na visão do professor da ESPM, com aproximação de aliados tradicionais, porque o mapa geopolítico está mudando. Enquanto isso, a percepção é de que líderes do Brasil e da Índia, em suas últimas conversas com o presidente americano Joe Biden, devem ter deixado claro que não irão comprar a mesma briga da China, pois não visam o afastamento do grupo.