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Mais afetados pelo Zika, pobres resistem a mudanças em lei sobre aborto

Publicado 10.02.2016, 18:20
Atualizado 10.02.2016, 18:30
© Reuters. Eritânia Maria, que está grávida de seis meses, em frente à sua casa em uma favela do Recife

Por Stephen Eisenhammer

RECIFE (Reuters) - Grávida de seis meses de seu primeiro filho, Eritânia Maria está com uma irritação na pele e febre baixa, sintomas do Zika vírus, que foi ligado à microcefalia – uma má-formação craniana – em recém-nascidos no Brasil.

Mas a futura mamãe de 17 anos está assustada demais para fazer um exame para confirmar se tem o Zika.

Como outras mulheres das favelas infestadas de mosquitos do Recife, Eritânia tem poucas opções se seu filho tiver microcefalia.

O Brasil tem uma das leis antiaborto mais rígidas do mundo e é culturalmente conservador. Mesmo se ela quisesse realizar um aborto ilegal e pudesse pagar por ele, a gravidez de Eritânia está avançada demais para que um médico arrisque o procedimento, por isso ela prefere nem saber.

"Estou com muito medo de descobrir que meu bebê vai ser doente", disse ela à Reuters.

O surto de Zika ressuscitou o debate sobre uma amenização da lei anti-aborto, mas o caso de Eritânia enfatiza a divisão profunda entre os ativistas e as autoridades da Organização das Nações Unidas (ONU), que clamam pela alteração, e os pobres brasileiros, que são os mais afetados pelo Zika mas tendem a ser contrários à interrupção da gestação.

Acrescente-se a isso um Congresso conservador repleto de políticos evangélicos que se opõem a um alívio na lei, mais a dificuldade de se identificar a microcefalia cedo o suficiente para se fazer um aborto seguro, e parece provável que as esperanças de mudança serão frustradas.

Assim como em muitos países da América Latina, que é majoritariamente católica, no Brasil o aborto é proibido exceto em casos de estupro, quando a vida da mãe está em risco ou quando a criança não tem condições de sobreviver.

Estimadas 850 mil brasileiras fazem abortos ilegais todos os anos, muitas em situações de risco. Elas podem receber uma pena de até 3 anos de prisão, embora na prática as sentenças sejam extremamente raras.

Com dois terços da população declaradamente católica e o apoio dos evangélicos crescendo rápido, pesquisas mostram que os brasileiros se opõem à alteração da lei. Um levantamento do VoxPopuli de 2010 revelou que 82 por cento rejeitam a descriminalização, e uma pesquisa Datafolha do mesmo ano apontou uma rejeição de 72 por cento.

Vandson Holanda, coordenador da Pastoral da Saúde da igreja católica de Recife, disse não haver nenhuma possibilidade de a igreja mudar de posição em relação ao aborto por causa do Zika. Os casos suspeitos de microcefalia ultrapassaram os 4 mil, e mais de 400 foram confirmados desde que o vírus foi detectado, em abril passado. Cerca de um terço dos casos suspeitos ocorreram nos arredores de Recife.

As cifras, se comparadas aos cerca de 150 casos em todo o país em um ano normal, não mostram sinais de diminuição.

Embora não haja comprovação científica do elo entre o Zika e a microcefalia, a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou uma emergência de saúde pública mundial no dia 1o de fevereiro, citando uma "suspeita forte" de uma ligação. Desde que chegou ao Brasil, o vírus se espalhou em 26 países das Américas.

Grupos de defesa da mulher do país, como o Anis, planejam apelar ao Supremo Tribunal pedindo um relaxamento da lei de aborto brasileira. Eles esperam poder usar o precedente de um caso bem-sucedido de 2012, quando se legalizou o aborto por anencefalia, complicação que leva o feto a se desenvolver sem grande parte do cérebro e do crânio.

Dada a dificuldade de se identificar a microcefalia antes das semanas finais da gravidez, Sinara Gumieri, assessora jurídica do Anis, afirmou que o grupo fará uma petição para que a corte legalize o aborto para mulheres diagnosticadas com Zika cujo bebê corre risco de infecção, mesmo que ela não tenha sido diagnosticada no feto. Ela admitiu que será difícil.

Os médicos que lideraram a campanha de 2012 não acreditam que o sucesso se repetirá.

"É completamente diferente", opinou Eugenio Pita, médico de Recife que realizou abortos legais através do sistema público de saúde durante 20 anos. "Na anencefalia o bebê não sobrevive; um aborto só está acelerando o inevitável. Bebês nascidos com microcefalia normalmente sobrevivem."

LEI MAIS RÍGIDA

Uma reforma legislativa parece ainda menos provável. A eleição de 2014 criou um Congresso ainda mais conservador e repleto de evangélicos, que representam cerca de um quinto dos 200 milhões de brasileiros.

O presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), eleito com o amparo da bancada evangélica, propôs tornar ainda mais difícil autorizar um aborto em casos de suposto estupro, o que desencadeou protestos em todo o país no ano passado.

Todos os anos, centenas de brasileiras morrem ou sofrem danos graves em abortos ilegais mal-sucedidos feitos com equipamento improvisado – a maioria por não ter dinheiro para viajar ao exterior ou pagar pelo atendimento de um bom médico.

"Os abortos ilegais trazem consigo riscos sérios, e temos que prestar muita atenção a suas complicações", afirmou Jailson Correia, secretário de Saúde do Recife, sugerindo um debate nacional sobre a liberalização da lei.

Até agora, não existem indícios conclusivos de que o Zika levou a um aumento nos abortos. O site Women on Web, uma instituição de caridade sediada em Amsterdã que se ofereceu para enviar pílulas abortivas gratuitamente a gestantes infectadas com o Zika, disse que os e-mails do Brasil indagando sobre o serviço triplicaram na semana passada.

As pílulas podem ser usadas para se interromper a gravidez nas primeiras 12 semanas.

Mas um serviço de Internet pago, o Aborto na Nuvem, declarou não ter notado um aumento maior nas visitas do que os 15 a 20 por cento usuais desde que a página foi lançada no ano passado. Seu co-fundador, Heinrick Per, disse que o serviço é usado principalmente por mulheres ricas e que não crê em um aumento na procura devido ao Zika.

DETECÇÃO TARDIA

Com equipamentos de última geração, especialistas afirmam que os sinais de microcefalia podem ser detectados a partir da 24a semana, mas que é impossível determinar quão grave o caso pode ser. No Brasil, se identificada antes do nascimento, a má-formação normalmente é notada entre a 30a e a 32a semana, quando a maioria dos médicos já não realiza um aborto ilegal.

"Depois de 12 semanas é difícil achar um médico que faça um aborto ilegal no Brasil. Depois de 24 semanas, é impossível", declarou o doutor Elias Melo, um dos principais obstetras do Hospital das Clínicas de Recife.

Embora raramente sejam processados, os médicos podem ser condenados a até 10 anos de prisão por realizarem um aborto ilegal.

"Não é só uma questão legal, é cultural também", disse Melo, observando que, entre a 30a e a 32a semana, já se tem um bebê de dois quilos que pode sobreviver se for retirado do ventre.

Para complicar tudo, até 80 por cento das pessoas que têm Zika não mostram sintomas, e não existe nenhum exame rápido e confiável para o vírus amplamente disponível.

Como resultado, algumas mulheres podem optar por abortar no início da gestação por precaução, para evitarem o risco de microcefalia, de acordo com especialistas.

A francesa e historiadora da ciência Ilana Löwy traça um paralelo com o surto de rubéola na Grã-Bretanha e na França nos anos 1950, quando o aborto era ilegal e mesmo assim o número de gestações interrompidas cresceu dramaticamente.

Mas ao contrário da rubéola, em que até 85 por cento dos fetos infectados no começo da gravidez mostram más-formações, até agora os médicos não têm provas de que o Zika causa microcefalia, e muito menos uma noção de sua probabilidade.

"Metade das minhas 50 pacientes tiveram sintomas como os do Zika em algum estágio da gravidez", afirmou Melo. "Nenhuma delas teve uma criança nascida com microcefalia".

Ainda assim, um aumento considerável nos casos de microcefalia pode representar um fardo imenso nas famílias pobres e nos sistemas públicos de saúde já sobrecarregados do país.

Em um hospital do Recife, Gabriela Falcão aninha seu bebê de dois meses, que nasceu com microcefalia e com as pernas retorcidas, enquanto espera um médico.

© Reuters. Eritânia Maria, que está grávida de seis meses, em frente à sua casa em uma favela do Recife

"Se pudesse voltar atrás, nem assim faria um aborto", disse. "Mantenho a esperança de que o meu bebê irá crescer e ficar como as outras crianças."

(Reportagem adicional de Ueslei Marcelino)

((Tradução Redação São Paulo, 5511 56447759)) REUTERS ES

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