SÃO PAULO (Reuters) - Episódio central na luta pelos direitos dos negros norte-americanos, a marcha de Selma, no Alabama, em março de 1965, foi, por anos, o sonho de diversos cineastas.
Diretores com perfis e estilos tão diferentes como Michael Mann, Stephen Frears, Paul Haggis, Spike Lee e, mais recentemente, Lee Daniels ("Preciosa: Uma História de Esperança") abraçaram o projeto. Mas nenhum encontrou condições para concretizá-lo.
A glória e o desafio couberam, afinal, a uma diretora relativamente novata, Ava DuVernay – que já havia vencido, em 2012, um prêmio de direção em Sundance pelo drama "Middle of Nowhere". Uma vitória que resultou em parcerias decisivas, como a com o ator britânico David Oyelowo, que atuou no filme, além de produtores poderosos, como Oprah Winfrey e Brad Pitt.
O que era à primeira vista uma desvantagem – a experiência restrita a filmes de baixíssimos orçamentos para os padrões de Hollywood ("Middle of Nowhere" custou cerca de 200 mil dólares) - , acabou tornando-se um trunfo, já que a diretora contou com não mais do que 20 milhões de dólares para realizar "Selma - Uma Luta pela Igualdade".
Uma soma que parece muito mais na tela, dada a excelência das reconstituições da marcha e a consistência de toda a produção. Qualidades que tornam suas solitárias duas indicações ao Oscar – melhor filme e canção original – uma das grandes injustiças da temporada anual de premiações.
Partindo de um roteiro de Paul Webb, a diretora recria na tela poucos meses da história dos Estados Unidos, mas recheados de acontecimentos dramáticos, e que começam em 1964, quando o reverendo e ativista Martin Luther King (David Oyelowo) recebe o prêmio Nobel da Paz.
Na época, o reverendo, defensor da não-violência com a mesma veemência com que se batia pelo fim da discriminação contra os negros, era uma figura notória o suficiente para estar na mira do FBI, que o vigiava sem descanso, e ser recebido como interlocutor pelo presidente democrata, Lyndon Johnson (Tom Wilkinson).
King tentava convencer o presidente a baixar uma legislação mais abrangente, visando garantir o direito ao voto da população afrodescendente. Apesar de nominalmente permitido, o registro de eleitores negros era impedido por toda sorte de subterfúgios e intimidações, particularmente nos estados do sul, como o Alabama, governado pelo reacionário George C. Wallace (Tim Roth), eleito com uma plataforma declaradamente segregacionista.
É neste Estado, na pequena cidade de Selma, que Luther King e diversos ativistas preparam uma marcha pela igualdade de direito de voto, que deveria atingir Montgomery, capital do Alabama. Mas a primeira tentativa da marcha, a 7 de março de 1965, terminou tornando-se conhecida como "Domingo Sangrento", dada a violenta repressão das autoridades, que espancaram e feriram seriamente vários dos cerca de 600 manifestantes.
Entre eles, não estava Luther King, que tivera problemas familiares. Ele estaria, porém, à frente da segunda tentativa, dias depois, que foi engrossada por participantes de diversas partes do país – vários deles, brancos -, novamente tentando cruzar a ponte Edmund Pettus, palco do "Domingo Sangrento". E que só teria sucesso numa terceira tentativa.
Apesar de serem fatos conhecidos, com intensa cobertura da imprensa, o filme constrói um sintomático suspense ao aprofundar os diversos personagens em seus impasses e contradições no preparo daqueles acontecimentos. Destaca-se, assim, a indispensável aliança entre King e diversos outros ativistas, como Ralph Abernathy (Colman Domingo), Amelia Boynton (Lorraine Toussaint), John Lewis (Stephan James) e dezenas de outros, evidenciando a força de um trabalho coletivo, ao invés da heroicização de um único homem.
Ainda que a família de King não tenha autorizado o uso dos famosos discursos do reverendo (e sua viúva, Coretta King, faça uma ponta no final), David Oyelowo consegue recriar, com vívido carisma e diálogos que parafraseiam a essência de seu pensamento, um dos personagens mais importantes na luta pelos direitos civis nos EUA, que foi assassinado em 1968, aos 39 anos.
Uma parte do impacto do filme neste momento atual provém, sem dúvida, de uma inesperada e trágica atualidade de seu tema, devido a inúmeras mortes de negros desarmados nos EUA nas mãos da polícia, como Michael Brown, Eric Garner e Tamir Rice, sem que os agentes, na esmagadora maioria dos casos, sejam levados a julgamento. Nada disto poderia ter sido previsto quando a produção de "Selma..." começou. Mas certamente adiciona material para colocar em paralelo os dois momentos.
(Por Neusa Barbosa, do Cineweb)
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