O mercado financeiro do Brasil nunca deixa de me surpreender. Negativamente, na maior parte dos casos. Lendo uma matéria da edição de domingo do jornal Folha de S.Paulo, ficou explícita uma tendência antiga entre profissionais do mercado: misturar negacionismo econômico e otimismo desvairado para criar um cenário no qual, aparentemente, o mundo inteiro está errado sobre o Brasil. A bola da vez, nesse momento, é a taxa de câmbio. Supostamente, se o preço fosse refletir os “fundamentos”, estaria girando em torno de R$4,20 – após atingir R$ 5,44 como pico do mês na semana passada, operava em leve queda nesta quarta-feira, a R$ 5,24.
Numa comparação com a Índia, em tese uma economia semelhante ao Brasil em termos da razão dívida-PIB, a divisa americana se valorizou 3,7% de janeiro a agosto desse ano. Por aqui, no mesmo período, subiu 24%, fazendo do real a moeda emergente que, com folga, mais se desvalorizou. A tese, nesse sentido, é que isso é efeito da instabilidade institucional promovida pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido), algo que de fato é verdade. O grande problema é presumir que há alguma maneira de descontar esse efeito, separando-o dos demais, para chegar-se a um valor “justo” para o dólar.
É nesse ponto que o negacionismo econômico entra em campo. Explico. Existem duas interpretações sobre o funcionamento dos mercados de capital: primeiro, que o mercado é eficiente e que todas as informações relevantes, publicamente disponíveis, estão embutidas nos preços; a segunda, que o mercado não é eficiente o bastante para precificar essas informações de forma rápida. Cada uma delas implica numa série muito importante de conclusões necessárias.
Mercado não-eficiente
Se o mercado não for eficiente o bastante a ponto de precificar informações públicas relevantes, isso significa que existe a possibilidade de nos anteciparmos a elas e obtermos um retorno adicional sem incorrer em riscos adicionais. Esse “adicional” livre de risco é conhecido como “alpha”, ao passo que a média do retorno por risco do mercado é conhecido como “beta”. Essa premissa está no cerne de todas, eu repito, todas, as abordagens de gestão ativa.
Isto, porque a ideia da gestão ativa é buscar informações, estratégias ou técnicas de construção/manutenção de portfólio que conseguem se antecipar ao movimento geral do mercado. Nominalmente: day, swing ou position trades; estratégias de buy and hold; análise técnica ou fundamentalista; algoritmos de negociação; fundos de investimento em ação ou multimercado; carteiras recomendadas... Todas elas presumem, necessariamente, que o mercado é, em algum grau, ineficiente e que é possível tirar proveito dessa ineficiência.
Mercado eficiente
Ao contrário da premissa de não-eficiência ou baixa eficiência do mercado, temos a premissa de que o mercado é bastante eficiente, o que na prática faz com que todas as formas de gestão ativa sejam efetivamente inúteis. A razão disso é que, na medida em que todas as informações públicas relevantes são prontamente integradas ao preço de um ativo, não sobra nenhuma informação a ser usada para driblar a relação risco-retorno. Logo, todo retorno adicional é explicado por um risco adicional.
Finalmente, como não é possível prever o surgimento de novas informações, muito menos a reação de cada agente de mercado a essas novas informações, os preços se comportam de forma imprevisível, randômica. Dessa forma, existem duas explicações fundamentais para quando dois portfólios igualmente diversificados produzem resultados diferentes. Primeiro, que existiam riscos adicionais em dos portifólios, riscos estes que não são contemplados pela diversificação. Segundo, por simples efeito da sorte.
Qual a premissa correta?
Muitas pessoas lhe dirão que não dá para saber qual das duas premissas está correta. Isto não é verdade. Eugene Fama e Ken French, uma das parcerias mais prolíficas da Economia contemporânea, mostraram exaustivamente que os mercados, na esmagadora maioria do tempo, se comportam de forma eficiente. A hipótese do mercado eficiente, da sua concepção por Fama nos anos 70, até os dias de hoje, deu origem a um corpo muito vasto e robusto de evidências, tanto teóricas quanto empíricas.
Equivale a dizer que, do ponto de vista científico, matemático e estatístico, tanto na teoria, quanto na prática, a gestão ativa é incapaz de resultar em ganhos adicionais sem incorrer em mais riscos. Mais do que isso, que na esmagadora maioria das vezes ela não só incorrerá em mais riscos como tende a gerar resultados inferiores à média do mercado dos EUA. Logo, a melhor forma de garantir bons resultados no longo prazo é através de um portfólio globalmente diversificado que reflita a média do mercado, usando ETFs indexados com baixíssimo custo de manutenção.
Mas e o Warren Buffet?
Quando confrontadas com as exaustivas evidências de que o mercado é eficiente, muitas pessoas tentam usar Warren Buffett como exemplo de que é possível ter ganhos acima do mercado sem incorrer em riscos adicionais. Para tanto, seria necessário conduzir uma análise extensiva das demonstrações de uma empresa, para se chegar ao valor “justo” daquela ação, e se aproveitar de distorções no preço para compra-la “com desconto”. Embora atraente, esse argumento (que tem peso de anedota), não se sustenta.
Em primeiro lugar, o próprio Buffett fez uma célebre aposta na qual pagaria 1 milhão de dólares a quem criasse um portfólio de hedge funds que superasse o S&P 500 ao longo de dez anos – Buffett, como podem imaginar, ganhou a aposta. De quebra, deixou claro que a herança que deixará para sua esposa deve ser inteiramente convertida em, pasmem, ETFs de baixíssimo custo indexados ao S&P 500 e o restante em títulos do tesouro dos EUA.
Em segundo lugar, o modelo mais recente criado for Eugene Fama e Ken French, conhecido como Fama-French Five-Factor Model, utilizado para mensurar os riscos que vão além do beta (lembrando, o risco adicional em relação a média do mercado) é capaz de explicar todos os riscos adicionais ao qual Buffett se expôs ao longo da sua trajetória, de modo que o alpha produzido é estatisticamente irrelevante. Teve mais retorno porque incorreu nos fatores de risco usados no modelo.
Tudo bem, mas o dólar?
Toda essa discussão teve origem naquilo que chamei de “negacionismo econômico”, ou seja, a disposição e até determinação em ignorar as evidências que indicam que não é possível, nesse caso, estimar um valor justo para a taxa de câmbio. Se existe uma discrepância entre os supostos fundamentos do real e o preço de mercado, isso tende a ser um sinal de que o modelo usado é precário, não que o mercado está agindo de forma ineficiente ou irracional. Mesmo quando se trata de um mercado altamente precário, como no caso do Brasil.
Quando o ministro da Economia Paulo Guedes fala que o preço do dólar ficou muito mais caro do que deveria (overshoot); quando economistas levantam dúvidas sobre o preço estar no patamar que está ou quando analistas dizem que “gringos não entenderam que o Brasil está decolando” (essa última é das minhas favoritas), estão simplesmente se recusando a reconhecer a teoria financeira contemporânea. Se o câmbio está no patamar que está, é porque o mundo inteiro tem péssimas expectativas para o Brasil, independentemente da tentativa de nos venderem a ideia contrária.
Quando falo em ideia contrária, me refiro ao que chamei, no início do texto e em outras ocasiões, de otimismo desvairado. Em alguns momentos, esse otimismo beira a esquizofrenia, porque o grau de descolamento com a realidade e a disposição em perder dinheiro para não abrir mão da fantasia é notável.
O caso mais emblemático é de 2019, quando o Ibovespa atingiu máximas históricas ao passo que investidores estrangeiros saíam em massa da bolsa. Enquanto o mundo tentava precificar a hecatombe econômica e a instabilidade política resultante do governo Bolsonaro, no Brasil seguíamos falando de como o proverbial gringo estava perdendo a chance de ganhar muita grana, porque o Brasil ia decolar. Achavam que viam o que o mundo não via, mas na verdade, não estavam vendo o que o resto do mundo via.
Em fevereiro de 2020, fez-se um esforço enorme para ignorar o fato de que a saída de capital estrangeiro da B3 (SA:B3SA3), que bateu nível recorde em 2019, havia sido superado novamente, em meros dois meses. Como todos sabem, pouco tempo depois veio a crise gerada pelo coronavírus e o Brasil foi dos países mais sofreu, na bolsa e no câmbio. Como esquecer, nesse cenário, do gestor (considerado gênio) que tinha posição gigantesca contra o dólar, resultando numa queda de cerca de 80% no valor do fundo?
Hora de superar as fantasias
Faço um convite a quem quiser deixar de lado as fantasias infantis sobre o Brasil: engolir o orgulho e se obrigar a olhar para nosso país da mesma forma que investidores/as estrangeiros olham para ele. Isso não é difícil, se pararmos para pensar que o mercado de fato é eficiente. Nossa bolsa não está “barata”, nossa bolsa oferece um altíssimo risco de perdas e é por isso que costuma ir mal. O dólar está nas alturas porque as expectativas futuras para o Brasil são péssimas, então não há demanda por reais – o que só mudará pra melhor quando houverem novas informações relevantes.
E adivinha só? Quando uma reforma vendida como revolucionária para o mercado brasileiro não gera reação no mercado, não é porque o mundo está errado. É porque ela foi irrelevante. Não adianta erguer estátua do Paulo Guedes, como fizeram na Faria Lima, para reconhecer um trabalho supostamente genial. Se tivesse sido, veríamos isso no câmbio, na inflação, na melhora do risco-Brasil. Não adianta falar que o PIB está crescendo apesar da miséria e da fome avançarem a passos largos – se fosse relevante, teria sido precificado.
O que fazer então?
Com isso em mente, se o Brasil realmente vai tão mal quanto o mercado estrangeiro acha que vai, o que fazer em termos de investimentos? O primeiro passo é reconhecer o lugar do mercado brasileiro no mundo: somos uma grande irrelevância, representando menos de 1% do mercado global. Considerando o principal índice de mercados emergentes, o MSCI Emerging Markets ETF (NYSE:EEM), o peso do Brasil é cerca de 5% do total, atrás de China (34%), Taiwan (14,55%), Coreia do Sul (13,42%) e Índia (10,72%), com outros países formando os 21% restantes.
Com isso em mente, por que diabos o portfólio nacional é composto, na média, de 99% ações brasileiras no caso da renda variável? Muita gente vai falar que é por causa dos custos para investir em dólar. Bom, mas com a liberação das BDRs para pessoas físicas, temos mais de uma opção de ETF capaz de replicar índices estrangeiros, além do próprio IVVB11 que está há anos disponível no mercado nacional.
Outra desculpa é que o câmbio representa um risco, mesmo quando embutido diretamente no rendimento, como no caso das BDRs. Ora bolas, mas se o real é historicamente uma moeda fraca, e o dólar uma moeda forte, é natural que no médio e longo prazo o segundo sempre supere o primeiro. Salvo o período que foi de 2002 a 2012, esse foi exatamente esse o caso. O histórico de preço mostra isso com bastante clareza, embora nos recusemos a reconhecer a grande fragilidade da divisa nacional.
Do ponto de vista financeiro e econômico, puramente racional, o correto seria começar com um portfólio que tem zero exposição direta ao Brasil e, a partir daí, ver o quanto conseguimos introduzir de exposição sem começar a gerar problemas no portfólio mais amplamente diversificado, considerando os eventuais benefícios para quem vive no Brasil.
O mundo, e o mercado mundial, tendem a estar muito mais corretos sobre nós do que nós mesmos. Aceitar isso é o primeiro passo para se livrar tanto do negacionismo econômico quanto do otimismo desvairado, que seguem sendo o maior risco ao seu patrimônio dos dias de hoje.