Recentemente acompanhamos a divulgação da Ata da Assembleia Geral Extraordinária da Via (BVMF:VIIA3), dona da Casas Bahia e Ponto, e a repercussão das críticas de Michael Klein, principal acionista e filho do fundador da Via, acerca da fixação da remuneração global anual dos membros da Administração da Companhia para 2022. Toda essa discussão me fez refletir sobre se de fato estamos preparados para discutir de forma séria caminhos para o desenvolvimento de melhores práticas ESG, acrônimo do inglês para ambiental, social e governança. Minha avaliação é que ainda temos muito a amadurecer em todas as três dimensões do ESG, a começar pela governança das empresas.
O mesmo Michael Klein, que protagonizou as manchetes nas últimas semanas, foi presidente do conselho de administração da Via até 2014 e se manteve como membro do órgão até 2020, quando foi substituído por seu filho Raphael Klein. Curiosamente, a Via foi uma das companhias que usou a liminar do IBEF para desobrigá-la a divulgar a remuneração média, máxima e mínima dos seus administradores, conselho de administração, diretoria executiva e conselho fiscal.
Sem entrar no mérito das críticas de Klein, só consigo pensar que os bons e velhos conflitos de interesse não conseguem sair de moda. E que ainda é difícil falarmos sobre ESG quando não conseguimos virar essa página.
Vale a pena entrarmos no túnel do tempo da literatura de governança corporativa e resgatarmos alguns trabalhos seminais sobre o tema. O trabalho de Berle e Means (1932) é considerado por muitos o marco inicial da discussão de governança corporativa e teve como objetivo principal analisar de forma empírica a composição acionária das grandes empresas norte-americanas e fomentar a discussão sobre como os conflitos de interesse relacionados a estruturas de propriedade dispersas poderiam afetar o desempenho e o valor das companhias. Os autores trouxeram à tona o debate sobre os benefícios e custos potenciais da separação entre propriedade e controle, que já era observado em algumas das empresas contempladas pelo estudo. A dispersão da propriedade gerou a necessidade da contratação de administradores, marcando a separação definitiva entre propriedade (acionistas) e controle (executivos).
Jensen e Meckling (1976) deram continuidade ao estudo do tema iniciado por Berle e Means, discutindo sobre os conflitos de interesses entre acionistas, gestores, credores e funcionários de uma empresa. Entre outras contribuições, o estudo apresentou, sob uma perspectiva mais ampla, a definição do termo “governança corporativa”, entendido então, como: “um conjunto de mecanismos internos e externos, de incentivo e controle, que visam minimizar os custos decorrentes do problema de agência”.
O início da discussão sobre o aprimoramento da governança corporativa nas organizações foi uma resposta ao problema de agência. Jensen e Meckling (1976) definem um relacionamento de agência como "um contrato onde uma ou mais pessoas – o principal – engajam outra pessoa – o agente – para desempenhar alguma tarefa em seu favor, envolvendo a delegação de autoridade para tomada de decisão pelo agente". O principal é aquele que delega poder para que o agente atue em seu nome, supostamente zelando o melhor possível pelos seus interesses. Os conflitos de agência ocorrem porque os interesses dos agentes e dos principais não são os mesmos e o monitoramento pode ser caro. Os custos de agência são, portanto, as perdas decorrentes do conflito de agência, incluindo aí as despesas de monitoramento.
Com propriedade dispersa, como ocorre com as maiores empresas dos EUA, o principal conflito se estabelece entre os acionistas em geral e a diretoria executiva. Com a propriedade concentrada, como é o caso dominante no Brasil e na maioria dos países da América Latina, Europa Continental e Ásia, o principal conflito se estabelece entre os acionistas majoritários/controladores/gestores e o demais acionistas.
Quando a propriedade é dispersa o comum é a busca de maximização da compensação dos executivos, desvinculando-a ao máximo do desempenho da empresa. E, ainda, com grande probabilidade de manipulação dos resultados e dos contratos de remuneração visando a maximização do valor da compensação vinculada ao valor da ação. Temos aqui a essência conceitual do conflito protagonizado, recentemente, por Michael Klein e a Via.
Já quando a propriedade é concentrada, o principal tipo de problema é o desvio de recursos para benefício dos acionistas controladores em detrimento dos demais. Os principais problemas se manifestam por meio dos benefícios privados do controle na forma de nepotismo, mordomias e transferência de resultados em transações com partes relacionadas. Aqui, por outro lado, encontramos a essência do conflito de interesses quando o Grupo Pão de Açúcar (BVMF:PCAR3) e a família Klein formavam o grupo de controle da companhia.
Há 100 anos a humanidade aceitava a ideia de que as empresas existiam para dar o maior retorno possível para os seus acionistas. Com a quebra da bolsa em 1929 e a Grande Depressão, novos pensamentos surgem e passa a prevalecer a ideia de que o propósito das corporações deve estar alinhado a um propósito social. Na década de 1970, com graves problemas na economia norte-americana, o trabalho de Friedman desponta: “a responsabilidade social de um negócio é aumentar seu lucro”. O mundo corporativo recitou esse mantra ao longo de quase cinquenta anos até que a crise financeira de 2008 chega, acompanhada de discussões sobre aquecimento global, desigualdade de gênero, saúde mental entre outros. Os administradores das grandes companhias estão tendo que responder a uma questão incômoda: atuam para proteger os direitos dos acionistas ou atuam em benefício de um conjunto maior de stakeholders, que envolve funcionários, consumidores, fornecedores, governo e a sociedade civil em geral?
Antes de nós reinventarmos o propósito das empresas, discutindo de forma séria a pauta ESG, não podemos esquecer de onde estamos e como chegamos até aqui.
Referências:
BERLE, A. A.; MEANS, G. C. The modern corporation and private property. New Brunswick: Transaction Publishers, 1932.
JENSEN, M. C.; MECKLING, W. H. Theory of the firm: managerial behavior, agency costs, and ownership structure. Journal of Financial Economics, v. 3, p. 305–360, 1976.
*Flávia Maranho Ponce de Leon é professora e coordenadora do Post MBA em ESG do COPPEAD