Um ano após a implementação do upgrade Dencun, a transição da Ethereum para um modelo escalonado baseado em soluções de segunda camada (Layers-2 - L2s) revela consequências inesperadas não previstas para a rede.
Uma Layer 2 é uma solução construída sobre a blockchain principal que melhora a escalabilidade e reduz custos ao processar transações fora da rede de processamento de dados, mas que mantém a segurança por estar “em cima” da blockchain base. [no final do artigo também há um glossário técnico para melhor entendimento do artigo]
E o que começou como uma solução técnica para aumentar a capacidade de processamento de dados da Ethereum está agora remodelando fundamentalmente a economia digital que sustenta o segundo maior criptoativo do mercado.
Desde 2021, o crescimento na demanda por espaço de bloco na Ethereum expôs as limitações estruturais da rede principal: capacidade de transação limitada e taxas proibitivamente altas em períodos de pico. A resposta foi uma aposta estratégica nas L2s.
A migração de atividades para redes L2 como Base, Arbitrum e Optimism tem sido massiva. Dados da Coin Metrics mostram que a Optimism processa atualmente 990 mil transações diárias, enquanto a Base, L2 da Coinbase (NASDAQ:COIN), adiciona impressionantes 7,5 milhões de transações, ambas com tempos de bloco de apenas 2,5 segundos – uma fração do tempo de processamento da rede principal Ethereum.
Número de Transações (Ethereum Mainnet, Base e Optimism) – Fonte: Coinmetrics
Dito isso, as transações, os usuários e as aplicações estão se deslocando da rede principal Ethereum (L1) para as soluções de escalabilidade de segunda camada (L2).
Upgrade na Rede e Efeitos Econômicos Imprevistos
O catalisador decisivo para esta transformação foi a introdução do "blobspace" no Upgrade Dencun da Ethereum em março de 2024.
Os "blobs" representam uma forma muito mais eficiente e barata para as L2s armazenarem dados na cadeia principal, reduzindo os custos de liquidação para níveis frequentemente abaixo de US$0,10 por transação.
Mediana das Taxas de Transação nas Soluções de Camada 2 (Layers 2) da Ethereum – Fonte: Dune Analytics
Esta inovação técnica teve um impacto econômico profundo: tornou as L2s extraordinariamente lucrativas. A Base, que lidera em termos de demanda de usuários, serve como maior exemplo ilustrativo dessa dinâmica.
Desde o upgrade Dencun, a Base gerou aproximadamente US$98 milhões em receitas de taxas de transação, enquanto pagou apenas cerca de US$4,9 milhões à camada base da Ethereum – um lucro estimado de US$94 milhões em menos de um ano.
Outras L2s como Optimism e Arbitrum também operam com margens saudáveis, otimizando custos e atraindo usuários com taxas competitivas. Este sucesso econômico está acelerando ainda mais o crescimento e a adoção de L2s dentro do ecossistema Ethereum, criando um ciclo positivo de retroalimentação.
No entanto, o que é bom para as L2s demonstrou ser problemático para a rede principal do Ethereum. À medida que as L2s prosperam, a economia central do Ethereum enfrenta consequências não intencionais.
Com a atividade de transações migrando massivamente para as L2s, a demanda por espaço de bloco na rede principal diminuiu drasticamente. Os dados mostram uma queda drástica nas receitas diárias totais da Layer-1 (Ethereum Mainnet) após o Upgrade Dencun.
Esta redução na atividade da rede principal tem um impacto direto no mecanismo de "queima" (burn mechanism) de ETH, implementado pelo upgrade EIP-1559 em 2021. Com menos transações, menos ETH está sendo queimado; aproximadamente 100 ETH por dia, um mínimo histórico.
Consequentemente, a taxa de inflação anualizada do Ethereum aumentou para cerca de +0,70% ao ano, revertendo o status de ativo deflacionário que havia sido um argumento-chave para investidores.
Este cenário trouxe questões relativas à atuação das L2s na Ethereum. Se elas agregam ou se parasitam a rede principal.
O Impacto Econômico na Ethereum
Muitos analistas argumentam que as L2s se tornaram "extrativas", capturando uma parcela desproporcional do valor econômico enquanto devolvem apenas uma fração à Ethereum através das taxas de blob.
O que é corroborado pelo exemplo da Base (L2 da Coinbase para a Ethereum), que retém mais de 95% das receitas geradas de suas transações, enquanto utiliza a infraestrutura e a segurança da Ethereum.
Por outro lado, defensores veem a relação como simbiótica, argumentando que as L2s estão expandindo o alcance e a utilidade do ecossistema da Ethereum como um todo, algo que a rede principal não conseguiria fazer isoladamente devido às suas limitações técnicas.
Dados adicionais parecem apoiar essa visão, uma vez que algumas criptomoedas (e.g. USDC e USDT), agora são emitidas nativamente em algumas L2s, indicando que elas estão capturando transações não apenas da rede principal, mas também de redes competidoras dentro do mercado.
Entretanto, o preço do ETH atingiu uma mínima de dois anos e questões sobre a acumulação de valor tornaram-se mais urgentes.
Preço ETH (US$) - Fonte: CoinMarketCap
É perceptível que o ETH está cada vez mais sendo precificado (correlacionado) com base na sua receita de taxas. E, à medida que as taxas na rede principal e a queima de ETH diminuem, os investidores ajustam a sua avaliação, preocupados com a menor capacidade de acumulação de valor do criptoativo.
Em Busca da Sustentabilidade
Entretanto, a comunidade Ethereum não está observando a situação passivamente. Com a implantação do upgrade Pectra, agendado para 7 de maio de 2025, que aumentará a capacidade dos blobs por bloco, a Ethereum inicia um movimento para realinhar os incentivos econômicos enquanto expande sua escalabilidade.
Essa atualização, integrante de um conjunto contínuo de melhorias (como aumentar a capacidade transacional da rede, diminuir custos e aumentar a escalabilidade), é uma resposta deliberada tanto às limitações atuais quanto à necessidade de melhor integrar as atividades da Layer 1 e das Layer 2s.
Ainda, os desenvolvedores, entre eles o co-fundador Vitalik Buterin, estão empenhados em transformar a Ethereum em um sistema de camadas altamente integrado. Enquanto a Layer 1 se dedica à segurança, à liquidação final e à disponibilidade de dados, as soluções L2 oferecem a escalabilidade necessária e uma experiência de usuário aprimorada.
A Ethereum foi a primeira a estabelecer smart contracts necessários à aplicação de um ecossistema com stablecoins, tokenização e DeFi; além disso, a rede possui o maior Valor Total Bloqueado (TVL) do mercado cripto, mostrando a sua relevância e potencial para aproveitar a renovada adoção e crescente demanda por aplicações descentralizadas.
Contudo, o êxito de sua estratégia dependerá de um delicado equilíbrio entre os constantes upgrades técnicos e a manutenção de uma economia digital que distribua valor de forma sustentável entre as diferentes camadas, mas que beneficie principalmente (ou de forma muito mais incisiva) a sua rede principal.
Dito isso, o futuro da Ethereum estará na sua habilidade de se adaptar e integrar a sua rede principal com suas soluções de escalabilidade, criando uma base que impulsione a maturidade e o crescimento sustentável da plataforma; de forma que as L2s não canibalizem o ecossistema e findem a Ethereum ou a tornem menos relevante no mercado cripto, que é altamente competitivo e dinâmico.
GLOSSÁRIO TÉCNICO
Layer 1 (L1): A camada base da Ethereum, onde ocorrem as transações, a execução de contratos inteligentes e o registro definitivo dos dados. É a rede principal no caso Ethereum.
Layer 2 (L2): Sistemas de escalonamento construídos sobre a Ethereum que processam transações fora da cadeia principal, posteriormente liquidando dados na Layer 1.
Blobs: Forma de armazenamento de dados introduzida no upgrade Dencun que permite às L2s publicar dados na cadeia principal Ethereum de maneira mais eficiente e econômica.
EIP-1559: Proposta de Melhoria da Ethereum implementada em 2021 que introduziu um mecanismo de queima de taxas que consome ETH, potencialmente tornando-o um ativo deflacionário quando a atividade da rede é alta.
Upgrade Dencun: Atualização implementada em março de 2024 que introduziu o conceito de blobspace na rede, aprimorando a eficiência e a economia nas transações das L2 ao oferecer uma maneira mais barata e eficaz de armazenar dados na cadeia principal.
Upgrade Pectra: Próxima atualização da Ethereum programada para maio de 2025, que aumentará a capacidade de blobs de 3 para 6 por bloco, com um máximo de 9 blobs.
Smart Contracts: Programas autoexecutáveis implantados na Ethereum que se ativam quando condições pré-estabelecidas são cumpridas, permitindo a execução de acordos digitais sem a necessidade de intermediários.
Valor Total Bloqueado (TVL): Medida que representa o total de ativos financeiros depositados em contratos inteligentes ou plataformas de finanças descentralizadas (DeFi) na Ethereum, servindo como indicador da confiança dos usuários e do valor acumulado dentro do ecossistema.