Ética, eficiência e a luta contra o mercado fantasma na exportação

Publicado 02.05.2025, 17:34
 

Minhas experiências no mercado de exportação

Na minha trajetória no mercado de commodities, sobretudo na exportação de açúcar, encontrei um personagem recorrente e nocivo. Trata-se de um personagem presente em muitos setores, mas que me chamou atenção pela sua habilidade de enganar compradores e vendedores: o “Papeleiro”.

No Brasil, chamamos assim aqueles que especulam sobre preços e mercados, mas que, na prática, não possuem um negócio real. Seu trabalho se resume à manipulação de documentos, à maquiagem de negociações e à criação de um cenário fictício de atividades empresariais. Muitas vezes, contam com o auxílio de empresas de fachada, localizadas em países como a China.

A verificação da autenticidade desses documentos e a falta de transparência nesses mercados são desafios diários para quem, como eu, busca operar com ética e profissionalismo. Nesse contexto, o compliance deixa de ser apenas uma exigência técnica e se torna um diferencial estratégico essencial para a segurança e a credibilidade do setor.

Neste artigo, quero mostrar como o compliance pode transformar a imagem do Brasil, muitas vezes visto como um mercado desorganizado. E, sobretudo, quero destacar as empresas que trabalham com seriedade e entregam qualidade de verdade.

O que são os “Papeleiros”?

Na minha experiência, a descoberta dos “papeleiros” começou com uma pergunta simples, mas fundamental: o que eles ganham com isso? Afinal, são horas de reuniões, trocas de documentos e, muitas vezes, investimentos em viagens e logística, tudo sem uma carga sequer ser embarcada. O custo de tempo e dinheiro envolvido torna a pergunta ainda mais inquietante. Afinal, em nenhum momento há negociação real de carga, tudo se sustenta em documentos meticulosamente forjados e numa cadeia de intermediários ávidos por comissão.

Como Atuam

Passei meses quebrando a barreira da desconfiança: cheguei a falar com alguém que parecia preparado, “próximo” da empresa compradora, mas 90% das vezes era só mais um falso comprador, com noção rasa de exportação, respostas evasivas e medo de revelar quem realmente estava do outro lado ou, na verdade, nem eles sabiam. Muitos intermediários caem na ilusão das comissões altas e sequer seriam capazes de produzir esses documentos bonitos; acabam sendo enganados e repassam FCOs, cartas-convite e cotações sem critério. Quando o negócio parecia avançar, entravam em cena supostos representantes estrangeiros, com videoconferências e até chegamos a receber comitivas da China e da Coreia do Sul desembarcando aqui. Investimos tempo, milhares de reais em passagens, hospedagens, intérpretes (muitos dos quais nem falavam inglês) e até organizei uma viagem para a Turquia, atrás de um “dono de trading” que, no fim, era mais um fantasma documental. Diante de meses de reuniões, viagens, almoços de negócios e documentos, passaportes escaneados, cartas de crédito MT-700, contratos espalhafatosos e a dúvida voltou a ecoar: o que eles realmente ganham com isso?

Reconheci, portanto, três tipos de papeleiros, cada um com interesses, abordagens e objetivos distintos:

O exército dos sonhadores

A grande maioria dos primeiros elos dessa corrente cai no “sonho da alta comissão”. Recebem promessas de ganhos fáceis e altos percentuais sobre toneladas de açúcar que, na verdade, não existem. Esses intermediários iniciais, sem preparo técnico ou acesso a sistemas de comércio exterior, simplesmente repassam documentos bonitos e mal validados para frente, na esperança de que alguém mais “experiente” confirme o negócio. O resultado é um verdadeiro exército de sonhadores espalhando cotações, LOIs (cartas-convite) e FCOs (Full Corporate Offers) sem nenhum critério de verificação. Um exemplo claro foi o de um intermediário que me enviou uma proposta repleta de selos e assinaturas falsas, acreditando estar prestes a fechar uma venda internacional milionária, sem sequer saber diferenciar entre um contrato vinculante e um termo de intenção. Essa rede de intermediários desinformados, movidos pela ilusão de lucros rápidos, forma o terreno fértil onde golpes mais sofisticados se consolidam

Espionagem de mercado

Ao mesmo tempo, os papeleiros utilizam essa rede para coletar informações: preços praticados, condições de pagamento, prazos, disponibilidade de estoque e perfis de empresas importadoras. Trata-se de uma forma de “abrir” um mercado, muitas vezes fechado por barreiras tarifárias ou embargos, sem nunca revelar quem realmente está por trás da demanda. Para países com restrições comerciais, esse modus operandi é vantajoso: conseguem mapear o mercado brasileiro “por dentro” sem se submeter às regras oficiais de comércio exterior. Essa coleta disfarçada de dados, feita à margem dos canais legais, representa uma ameaça direta à competitividade nacional e à proteção estratégica das informações comerciais brasileiras.

Golpistas de alta periculosidade

No ápice dessa fraude, os papeleiros vendem uma farsa sofisticada: passam-se por representantes oficiais de grandes trading houses e chegam a realizar videoconferências, enviar comitivas internacionais, bancar voos e hospedagens — tudo para dar aparência de legitimidade. Já financiamos viagens para a Turquia, apenas para descobrir, ao chegar lá, que o suposto dono da trading era mais um fantasma documental.

Nesse último ponto, o risco extrapola o simples desperdício de tempo: documentos sensíveis como passaportes, números de conta bancária, e até cartas de crédito (MT-700), circulam livremente. Uma vez em posse dessas informações, o golpe pode migrar para roubo de identidade, abertura não autorizada de LCs ou mesmo monetização indevida desses instrumentos. Os prejuízos atingem não apenas as empresas envolvidas, mas podem respingar nos bancos emissores e, por extensão, na imagem do Brasil como um todo.

 

Impacto na reputação do Brasil

Esse esquema não afeta só o bolso de quem é enganado: mina a confiança de importadores verdadeiros, que acabam desconfiando da seriedade do nosso setor. Lá fora, fala-se que “o Brasil é desorganizado” ou “cheio de papéis vazios”, reflexos diretos da ação dos papeleiros. Por outro lado, empresas sérias, que investem em compliance e processos robustos, veem sua credibilidade questionada por causa de fraudes e informações truncadas. Essa coleta de dados disfarçada, muitas vezes utilizada para espionagem comercial, representa uma ameaça direta à competitividade nacional e à proteção estratégica do nosso mercado.

É neste ponto que se reforça a urgência do compliance: não apenas como um conjunto de regras burocráticas, mas como ferramenta essencial para proteger o nome do Brasil e assegurar que, quando dizemos “exportação”, há de fato carga embarcando, contratos cumpridos e ganhos legítimos sendo distribuídos.

O papel do compliance como ferramenta de defesa

O compliance, segundo Christine Parker, professora de Direito na University of Melbourne, é “um conjunto de normas e procedimentos internos que visam prevenir, detectar e remediar condutas ilegais ou antiéticas dentro das organizações” (Parker, 2019). Já para Michael Power, autor de The Audit Society, o compliance traduz-se em uma cultura de responsabilização que vai além da simples verificação documental e se integra à governança corporativa (Power, 1997).

Na prática, as diretrizes de compliance atuam em três frentes principais:

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    Prevenção: implementação de políticas internas claras, treinamentos e canais anônimos de denúncia (Transparency International, 2020).

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    Detecção: monitoramento contínuo de transações, due diligence de parceiros e auditorias regulares (OECD, 2017).

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    Remediação: investigação de incidentes, aplicação de sanções internas e revisão de processos para evitar recorrências (Alvarez & Marsal, 2021).

Autores como Larry Lippert reforçam que, em mercados de alta vulnerabilidade a fraudes como o de commodities, o compliance deve ser encarado não como custo, mas como investimento estratégico, capaz de elevar a reputação e garantir a perenidade dos negócios (Lippert, 2022). Nesse sentido, o relatório da Deloitte sobre Compliance Trends destaca que empresas que investem acima de 2% da sua receita anual em programas de compliance apresentam 35% menos incidentes de fraude (Deloitte, 2023). 

Exemplos práticos no combate aos papeleiros estrangeiros:

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    Durante uma tentativa de negociação com um suposto comprador chinês, o compliance exigiu due diligence internacional: a conferência de registros na administração pública chinesa e em bases como aHainan Administration for Market Regulation revelou que a empresa jamais existiu, evitando um golpe estimado em mais de US$ 200 mil.

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    Em outro caso envolvendo um intermediário que prometia envio de açúcar à Coreia do Sul, a autenticação de selos e assinaturas junto àKorea Chamber of Commerce and Industry comprovou que os documentos eram falsos, interrompendo a remessa antesda assinatura do contrato.

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    A implantação de um canal anônimo de denúncias interno permitiu que colaboradores apontassem agentes que ofereciam comissões irreais ligadas a empresas de fachada no Oriente Médio; essas denúncias resultaram na paralisação de diversas tratativas em pouco tempoe a criação de uma “Black List”.

Esses exemplos mostram que, mesmo frente a papeleiros internacionais, o compliance eficaz, com due diligence global e canais de denúncia,é capaz de desmantelar o mercado fantasma e proteger o negócio brasileiro.

Exemplos de boas práticas no agro brasileiro

No outro lado do espectro, há empresas brasileiras do mercado de commodities que não só seguem as melhores práticas de compliance, mas as utilizam como alavanca de competitividade. Exemplos notáveis incluem:

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    Copersucar: referência global em açúcar e etanol, que mantém um programa interno de due diligence de parceiros desde 2018, garantindo que todas as contrapartes internacionais estejam auditadas e certificadas antes de qualquer negociação;

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    Bunge (NYSE:BG) Brasil: que adotou rastreabilidade por blockchain em parte de sua cadeia de suprimentos de óleo vegetal, permitindo ao importador verificar cada etapa da logística e aumentando a confiança em seus processos;

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    Tereos: principal produtor de açúcar do país, que instituiu comitês de ética independentes e relatórios de sustentabilidade auditados por terceiros, obtendo reconhecimento de organismos internacionais e ampliando sua presença na Europa e na Ásia.

Esses casos demonstram que o compliance não é um fardo, mas uma vantagem competitiva real: empresas que investem em processos sólidos ganham confiança internacional, reduzem riscos e elevam sua participação no mercado global.

Um chamado à seriedade e eficiência

Combater os papeleiros não é apenas uma questão de autoproteção, é uma responsabilidade coletiva e um exercício de construção de valores essenciais nas organizações. O compliance vai além de um conjunto de regras: é a base para cultivar ética, transparência e compromisso com a verdade em cada etapa da negociação. Ele fortalece a responsabilidade social, pois a empresa se mostra responsável e confiável diante de todos os parceiros comerciais.

Além disso, o compliance promove eficiência, poupando tempo e recursos antes desperdiçados em negociações infundadas e golpes. Não se trata de custo ou burocracia, mas de investimento em segurança, em uma imagem positiva no mercado e em ganho de produtividade. Quando adotamos práticas sólidas de compliance, garantimos que cada contrato firmado reflita integridade e profissionalismo, transformando a reputação do Brasil e abrindo caminho para um futuro de exportações mais éticas e eficientes.

O agronegócio e a agroindústria no Brasil representam uma fatia significativa da economia nacional, correspondendo a 23,2% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2024, com um valor estimado de R$2,72 trilhões*¹. Além disso, o setor é responsável por quase metade das exportações brasileiras, totalizando US$164,4 bilhões no mesmo ano. Dada essa relevância, a responsabilidade das empresas do setor deve ser proporcional, exigindo investimentos robustos em práticas de compliance.

O agronegócio brasileiro precisa se profissionalizar ainda mais em matéria de compliance para alcançar e manter o patamar de liderança nas commodities que se propõe a negociar. A adoção de padrões elevados de integridade e governança é essencial para consolidar a posição do Brasil como um parceiro confiável no comércio internacional.

É hora de elevar o padrão do nosso comércio exterior, mostrando ao mundo que o Brasil não é apenas um grande produtor, mas também um parceiro confiável, transparente e comprometido com a ética.

*¹Fonte: Cepea/USP e Ministério da Agricultura (MAPA), dados de 2024.

 

 

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