Ganha R$ 5.700,00 por mês e não tem uma cobertura? Você está fazendo tudo errado!

Publicado 12.06.2025, 13:18

A retórica de “justiça fiscal” do governo, apresentada na voz do ministro Fernando Haddad, ganhou os holofotes ao afirmar que as novas medidas tributárias “só afetam moradores de cobertura” – será? À primeira vista, pode até soar como uma defesa legítima dos interesses da população comum, acenando para a ideia de que apenas a elite capitalista opressora, supostamente intocada pelo sistema, será atingida. No entanto, uma análise mais minuciosa revela que esse discurso, além de simplista, ignora nuances importantes da estrutura socioeconômica brasileira, distorce os efeitos e as intenções reais e mascara o alcance das medidas sobre o cotidiano da vasta maioria da população.

Os dados são os melhores antídotos contra narrativas que tentam reduzir discussões complexas a slogans batidos, utópicos e ultrajantes. Hoje, o investidor médio no Brasil está longe de ocupar a cobiçada “cobertura” nas grandes cidades. Segundo o último Raio X do Investidor Brasileiro da Anbima, o valor médio investido por pessoa física em produtos financeiros é de cerca de R$ 5.700. Esse valor está muito distante dos patamares que permitem qualquer associação com luxo imobiliário – e, se alguém pretende adquirir uma cobertura com esse capital, é provável que sequer consiga arcar com o condomínio de um mês. Mesmo entre os que possuem investimentos mais robustos, a realidade é de um mercado altamente pulverizado, composto majoritariamente por pequenos e médios poupadores.

Quando o governo anuncia o fim das isenções para instrumentos como LCI, LCA, CRI e CRA, ou eleva o Imposto de Renda sobre aplicações financeiras para 17,5%, a mudança atinge, em cheio, investidores comuns que buscam alternativas minimamente rentáveis diante de um país cujo risco fiscal, político, jurídico e econômico não compensam o prêmio país, hoje avaliando bem acima desses quase 15% de taxa de juros. E, ao contrário do que o ministro pensa (ou finge que pensa), esses produtos não são exclusividade da elite: são instrumentos utilizados por famílias de classe média e profissionais liberais para financiar projetos de vida, criar reservas de emergência e proteger-se da corrosão inflacionária. Cerca de 68% dos detentores de LCI/LCA possuem aplicações inferiores a R$ 20 mil, segundo o Banco Central. Portanto, o impacto direto recai sobre uma parcela muito mais ampla da sociedade – e que não moram em coberturas, fato!

A argumentação de que “quem não aplica, não será afetado” ignora um mecanismo fundamental da economia: o repasse dos custos. Quando se tributa produtos que financiam o agronegócio ou o setor imobiliário, há um efeito cascata que encarece o crédito, restringe a oferta e, por consequência, eleva o preço final de alimentos e imóveis. O próprio setor produtivo já sinalizou preocupação. Entidades como a Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias e representantes do agronegócio alertam que o custo do dinheiro pode subir em até 0,5 ponto percentual em financiamentos, reduzindo o acesso da população a moradia e pressionando a inflação de alimentos, exatamente onde o peso recai mais fortemente sobre os mais vulneráveis.

A tentativa de restringir o debate ao universo dos “moradores de cobertura”, instigando (ainda mais) a enfadonha “luta de classes”, o “rico versus o pobre”, esconde a complexidade do sistema tributário nacional, que historicamente penaliza mais a renda do trabalho do que o capital. O Brasil já cobra pesadamente sobre o consumo e sobre a folha de pagamento, um dos fatores que explicam a elevada evasão para trabalhos informais e MEIs.

Ademais, é importante contextualizar a relevância dessas renúncias fiscais. Relatórios do Tribunal de Contas da União e do Tesouro mostram que o volume total das isenções fiscais federais atinge R$ 563 bilhões ao ano, aproximadamente 5% do PIB. Contudo, boa parte desses valores está associada a políticas públicas como Simples Nacional, Zona Franca de Manaus e incentivos ao agronegócio, cujos benefícios sociais e econômicos são largamente debatidos. Um corte linear ou a simples eliminação de benefícios em setores produtivos pode até aliviar o caixa no curto prazo, mas a um custo elevado para emprego, renda e competitividade. Países desenvolvidos, como Alemanha, Estados Unidos e Japão, também mantêm regimes de incentivos, focados em inovação, habitação ou agroindústria, justamente para garantir dinamismo e geração de riqueza. No Brasil, falta transparência e revisão criteriosa, além da qualificação tanto das isenções como dos gastos – não um ataque indiscriminado à sociedade, ao empresário e ao investidor.

Haddad argumenta que a alíquota efetiva sobre as faixas mais altas de renda é baixa, chegando a apenas 2,5% para quem ganha acima de R$ 1 milhão ao ano, segundo dados da Receita Federal. O problema é que essa distorção resulta da fragmentação e das brechas da legislação, não apenas da existência dos instrumentos agora atacados. Uma reforma verdadeiramente progressiva teria de atingir dividendos, heranças, trusts, planejamento sucessório e offshores, além de reduzir a tributação regressiva sobre o consumo. Porém, o governo opta por medidas que produzem impacto rápido, sem corrigir as assimetrias estruturais e sem atacar privilégios de verdade – visando às eleições de 2026, o populismo barato (e muito caro) e as benesses dos “amigos do Rei”.

Outro aspecto negligenciado na retórica oficial é o efeito sobre o ambiente macroeconômico. A promessa de que tais medidas trariam alívio ao câmbio e permitiriam a queda dos juros não se confirma nos fatos. A curva de juros futuros continua elevada, o risco-país permanece alto e o dólar segue oscilando em patamares de aversão, sinalizando que o mercado percebe as mudanças como de viés arrecadatório, e não de consolidação fiscal estrutural. O investidor local, ao se deparar com a redução da atratividade dos ativos domésticos, migra parte de seus recursos para o exterior, pressionando ainda mais a saída de capital e tornando a vida do Banco Central mais difícil – seja por conta do dólar ou por causa da inflação.

Por fim, a narrativa de que as medidas não atingem o brasileiro médio não se sustenta quando se observa a estrutura social do país. O IBGE mostra que apenas 13% dos brasileiros conseguem poupar regularmente. Dentre estes, a maior parte opta por aplicações tradicionais, de baixo risco e com rentabilidade limitada. Ao tributar justamente os instrumentos que permitiam um rendimento levemente superior – e, de quebra, ainda financiar setores estratégicos – o governo encarece o custo de vida e fragiliza ainda mais o já exíguo colchão financeiro das famílias.

A justiça tributária verdadeira exige debate amplo, reforma estratégica e profunda e compromisso com a transparência. Ficar restrito à retórica do “morador de cobertura” é não apenas desinformativo, mas contraproducente. O país precisa de coragem para enfrentar privilégios reais, revisar incentivos ineficientes e construir um sistema tributário que premie o investimento produtivo, alivie o peso sobre o trabalho e fomente a prosperidade de todos - não apenas dos que, nas palavras do ministro, habitam as coberturas.

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