O Brasil está prestes a atingir um feito inédito: ultrapassar a marca de R$ 4 trilhões em arrecadação federal em 2025, segundo as projeções do Ministério da Fazenda e balanços prévios da Receita. Nos últimos dois anos, o governo já bateu recordes seguidos, inflando receitas em níveis “nunca antes visto na história deste país”. Para qualquer observador externo, esse desempenho seria sinal de musculatura fiscal, capacidade de planejamento e robustez das contas públicas. No entanto, para quem observa de perto o fluxo orçamentário nacional, a história é outra: trata-se de uma máquina de arrecadação que funciona cada vez melhor, mas para um Estado que entrega cada vez o pior.
O debate sobre a recente “recalibragem” do IOF, com o anúncio do ministro Fernando Haddad de tributar apostas esportivas - as famigeradas bets - e títulos de crédito isentos, como LCIs, LCAs, CRIs e CRAs, escancara as contradições do modelo fiscal brasileiro. O aumento sobre jogos de azar é um acerto inquestionável. Trata-se de um setor que, ao longo dos últimos anos, cresceu sem regulação, fomentando vícios, lavagem de dinheiro, evasão fiscal e, mais grave, corroendo o tecido social de famílias inteiras. Tributar as bets é, antes de tudo, uma questão de justiça social e de correção de assimetrias que só beneficiam casas de apostas e “operadores anônimos”.
Mas o outro lado da moeda é desastroso: ao tributar títulos que servem para irrigar o crédito ao agronegócio, à habitação e à infraestrutura - pilares fundamentais do desenvolvimento nacional - o governo dá um tiro no pé do próprio crescimento econômico. O que se viu nas últimas décadas foi um esforço, ainda que tímido, de direcionar o investimento doméstico para setores produtivos por meio de incentivos fiscais. LCIs e LCAs estimulam a construção civil e o mercado imobiliário, enquanto CRIs e CRAs foram desenhados para viabilizar projetos estruturantes e financiar a cadeia do agro, que ainda é responsável por quase 25% do PIB brasileiro. Ao asfixiar essas fontes de financiamento em nome de uma arrecadação de curtíssimo prazo, o país compromete não apenas o presente, mas toda a sua trajetória de desenvolvimento
A crítica não é meramente teórica. Dados do mercado já mostram desaceleração nas emissões desses papéis - queda de até 7% desde o início da sinalização de tributação, segundo levantamento da Anbima. E os efeitos não param aí: sem acesso a crédito barato e direcionado, o pequeno produtor rural, o incorporador imobiliário e o empreendedor inovador acabam reféns do crédito bancário tradicional, notoriamente caro e restritivo. Quem paga a conta, no fim do dia, é a população que vê o preço do alimento subir, o aluguel disparar e as oportunidades de negócios rarearem.
Em paralelo, a dívida pública brasileira segue crescendo. Em abril de 2025, já superava 76% do PIB, com custo anual superior a R$ 700 bilhões apenas em pagamento de juros e rolagem de títulos. Cada ponto percentual a mais na Selic implica R$ 45 bilhões adicionais, comprimindo ainda mais o espaço fiscal. A pergunta óbvia, que raramente é feita: para onde está indo todo esse dinheiro? O Brasil arrecada como nunca, mas gasta sem critério, com uma máquina estatal inchada, programas ineficazes, privilégios preservados e pouco ou nenhum avanço em reformas estruturantes. O que se observa é uma perpetuação do ciclo: quando o dinheiro aperta, cria-se um novo imposto ou se tributa o que deveria ser incentivado - nunca se corta o gasto excessivo.
Essa omissão em discutir a despesa pública é o verdadeiro nó do ajuste fiscal brasileiro. No discurso oficial, a responsabilidade recai sempre sobre a necessidade de arrecadação emergencial, como se o Tesouro fosse eternamente vítima de fatores externos, câmbio, guerra comercial ou oscilações do petróleo. Na prática, pouco se faz para enfrentar privilégios previdenciários, rever subsídios inúteis, extinguir autarquias inoperantes ou enxugar a folha de cargos comissionados. A inércia estatal se revela quando se compara a eficiência das instituições arrecadadoras com a letargia de quem deveria administrar o dinheiro público com responsabilidade e resultado.
É preciso reconhecer: tributar as bets é acertado e urgente. O impacto social desses jogos é devastador e, enquanto não houver regulamentação robusta, a tributação severa é o mínimo que se espera de um Estado comprometido com o bem-estar social (pelo menos no discurso). Mas a mesma lógica deveria se aplicar ao incentivo à produção: taxar instrumentos que canalizam recursos para o setor real da economia é contraproducente, pois sufoca o investimento de longo prazo e enfraquece a capacidade do país de gerar empregos e renda de forma sustentável, além de afastar investidores sérios em busca de oportunidade. Até porque, como já dizia o Ex-Ministro Pedro Malan:
“No Brasil, até o passado é incerto”
A resposta, portanto, não está no aumento linear da carga tributária, mas em recalibrar o Estado de dentro para fora. A prioridade deveria ser uma revisão corajosa do gasto público: cortes reais em privilégios, eliminação de penduricalhos, revisão periódica dos programas sociais, avaliação rigorosa dos incentivos setoriais e profissionalização da gestão orçamentária. Ah, mas estamos falando de um momento pré-eleitoral cuja popularidade do atual presidente nunca esteve tão baixa. Então, vamos potencializar o populismo para garantir mais quatro anos do país dos sonhos!
Saindo da utopia e voltando para o mercado financeiro, o recado é claro: prepare-se para um ambiente mais hostil para o capital produtivo, com juros elevados, custos de crédito em alta e uma seletividade ainda maior dos investidores institucionais. Por outro lado, sempre há espaço para inovação. Quem conseguir antecipar movimentos – buscando oportunidades em setores não tributados, explorando instrumentos híbridos, migrando parte do portfólio para ativos internacionais ou operando em nichos de alta demanda regulatória – poderá capturar ganhos extraordinários enquanto a maioria se perde no labirinto fiscal.
O futuro da economia brasileira não será construído com mais impostos ou celebração de recordes de arrecadação. Ele dependerá da capacidade de o país romper com o ciclo de omissão nos cortes e adotar, finalmente, uma agenda de produtividade e responsabilidade fiscal genuína. Enquanto isso não acontecer, toda euforia com a arrecadação recorde será, na melhor das hipóteses, uma vitória de Pirro – retumbante, mas insustentável.